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“Urikianas”


De memória, lembro do bar e o do rosto miúdo atrás dos olhos apertados, reluzentes, afogueados. Que ano era aquele? Tinha pressa, queria conversar, mas já estava de partida. Durante todo esse tempo, tive essa impressão de que era dessas pessoas que falavam enquanto se despediam, instaurando nesse movimento uma presença-ausência precocemente exibida.

Parte de si ia embora, outra estava apenas de chegada, num desencontro de corpos e de tempos.

A quem me perguntasse, dizia: estou esperando o livro que Urik escreve, tenho certeza de que guarda algo, de que é o portador de um segredo muito bem escrito, de que o que se lê é apenas ensaio, um jogo que se arma nessa vacância de espírito, exercícios de prazer.

Então deu-se o sumiço. Soube que viajara, que estava longe, que exorbitara as fronteiras, que se desvanecera. Onde agora? Minas seria um paradeiro possível, no Rio fora visto entre árvores, em São Paulo uma fantasmagoria, esse perfil sem contorno que às vezes assumia mesmo em Fortaleza, cidade de sol imperativo cujas sombras projetam-se verticalmente no rosto, de modo a criar um sorriso que é também careta, felicidade que é tristeza, satisfação que é azedume. Tudo um borrão luminoso, no horizonte o desenho da luz superlativa que transfigura o que toca.

Nessa geografia corrosiva, era alegre. Ou o contrário – corrosivo entre contentes. Nele, avesso e esquerdo se confundiam. Sem tipos, não se concedia demasiada importância, tampouco se escondia. Um dia o encontrei parado numa esquina. Noutro, dançando até de madrugada, com trejeitos de maldito. Num terceiro, flertando.

Diverso de si, sobretudo debochava. E triste de quem se tornasse endereço de sua verve “padeira”, mezzo escrachada, mezzo sofisticada, lítero-bandoleira.

Ameninado, via-o infantil por aí, pelas ruas, brincalhão, espirituoso e divertido. Numa dessas, convidei-o a escrever o que quer que fosse, eram sempre assim esses contatos, sem preâmbulos, sem regras. Suponha que... Imagine que...

E lá se punha o Urik tão ligeiramente a esboçar um mundo desvairado, toda a torção de linguagem para alcançar sabe-se lá que desejos, imagens que fabricava com pequenos golpes de frase num tempo tão curto, aligeirado, comprimido.

Sabia que, mal chegasse em casa, encontraria mensagem com o resultado, e então voltava a me convencer: quero ler quando tiver finalmente concluído o seu livro.

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