Pular para o conteúdo principal

Restos de sombra


Coleciono inícios, restos de frases, pedaços e quinas das coisas que podem eventualmente servir, como um construtor cuja obra é sempre uma potência não realizada. Fios e tralhas, objetos guardados em latas de biscoito amanteigado, recipientes que um dia acondicionaram substâncias jamais sabidas.

Se acontece de ter uma ideia, por exemplo, anoto mentalmente, sem compromisso. Digo a mim mesmo que não esquecerei, mas sempre esqueço depois de umas poucas horas andando pela casa, um segundo antes de tropeçar na pedra do sono ou de cair no precipício dos dias úteis.

Às vezes penso: dá uma boa história, sem saber ao certo de onde partiria, aonde chegaria, se seria realmente uma história com começo, meio e final, se valeria a pena investir tempo, se ao cabo de tantos dias dedicado a escrevê-la ela me traria mais felicidade ou mais tristeza, se estaria satisfeito em tê-la concluído ou largando-a pela metade.

Enfim, essas dúvidas naturais num processo qualquer de escrita de narrativas que não são como essas que fazemos todo dia, que eu faço todo dia, repetindo o gesto já coalhado no ar como tigela de leite que se estragou por esquecimento.

Mesmo com essa dificuldade, vou juntando, acumulando, encerrando num escaninho. É ainda coleção se os materiais não guardam qualquer relação entre si? O que os conecta, que fio os liga? Sou colecionador se os itens dispostos se contrastam e repelem mais que atraem e completam?

Tenho uma gaveta inteira repleta desses conteúdos não catalogados, uma seção da estante onde armazeno o incompleto, um cômodo apartado da casa destinado a tudo que é rastro sem ter sido caminho. Todo um setor da biblioteca para o inacabado, o não visto, o não lido.

Crio uma novela ou um ensaio, mas desisto antes da metade e nesse esforço me esgoto. Flerto com o fracasso. Mantenho essa criatura sem nome ou forma definida ao alcance da mão por algum tempo ainda, até finalmente entender que dali não resultará nada nem de bom nem de ruim.

Talvez a saída fosse fazer tudo aos bocados. Então eu precisaria de mais do que uma vida para terminar o menos ambicioso dos projetos. Um evangelho apócrifo, um novo manual de trânsito, uma lei redistribuindo as terras da capitania, um estudo concentrado sobre o mercado da autoestima.

Me contentaria mesmo com uma frase. Um conjunto limitado de letras enfileiradas sem que delas se exija qualquer sentido manifesto, tampouco que soem grandiloquentes ou acadêmicas, sequer prosaicas. Palavras ordinárias, em estado de dicionário, com que se vai ao supermercado numa tarde de domingo.

Outro dia formei algo assim, ao acaso. A justaposição de partes avulsas, peças sem encaixe natural que coloquei lado a lado sem motivo algum. Como passageiros de um ônibus apanhados à revelia. Nada harmônico ou agradável. Olhei ao final e me pareceu algo possível, um corpo informe produzido por sabe-se lá que força animadora. É um mistério que exista, que murmure algo no meio da noite numa língua toda feita de adivinhação.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Trocas e trocas

  Tenho ouvido cada vez mais “troca” como sinônimo de diálogo, ou seja, o ato de ter com um interlocutor qualquer fluxo de conversa, amistosa ou não, casual ou não, proveitosa ou não. No caso de troca, porém, trata-se sempre de uma coisa positiva, ao menos em princípio. Trocar é desde logo entender-se com alguém, compreender seu ponto de vista, colocar-se em seu lugar, mas não apenas. É também estar a par das razões pelas quais alguém faz o que faz, pensa o que pensa e diz o que diz. Didatizando ainda mais, é começar uma amizade. Na nomenclatura mercantil/militar de hoje, em que concluir uma tarefa é “entrega”, malhar é “treinar”, pensar na vida é “reconfigurar o mindset” e praticar é “aprimorar competências”, naturalmente a conversa passa à condição de troca. Mas o que se troca na troca de fato? Que produto ou substância, que valores e capitais se intercambiam quando duas ou mais pessoas se põem nessa condição de portadores de algo que se transmite? Fiquei pensando nisso mais te...

Atacarejo

Gosto de como soa atacarejo, de seu poder de instaurar desde o princípio um universo semântico/sintático próprio apenas a partir da ideia fusional que é aglutinar atacado e varejo, ou seja, macro e micro, universal e local, natureza e cultura e toda essa família de dualismos que atormentam o mundo ocidental desde Platão. Nada disso resiste ao atacarejo e sua capacidade de síntese, sua captura do “zeitgeist” não apenas cearense, mas global, numa amostra viva de que pintar sua aldeia é cantar o mundo – ou seria o contrário? Já não sei, perdido que fico diante do sem número de perspectivas e da enormidade contida na ressonância da palavra, que sempre me atraiu desde que a ouvi pela primeira vez, encantado como pirilampo perto da luz, dardejado por flechas de amor – para Barthes a amorosidade é também uma gramática, com suas regras e termos, suas orações subordinadas ou coordenadas, seus termos integrantes ou acessórios e por aí vai. Mas é quase certo que Barthes não conhecesse atacarejo,...

Projeto de vida

Desejo para 2025 desengajar e desertar, ser desistência, inativo e off, estar mais fora que dentro, mais out que in, mais exo que endo. Desenturmar-se da turma e desgostar-se do gosto, refluir no contrafluxo da rede e encapsular para não ceder ao colapso, ao menos não agora, não amanhã, não tão rápido. Penso com carinho na ideia de ter mais tempo para pensar na atrofia fabular e no déficit de imaginação. No vazio de futuro que a palavra “futuro” transmite sempre que justaposta a outra, a pretexto de ensejar alguma esperança no horizonte imediato. Tempo inclusive para não ter tempo, para não possuir nem reter, não domesticar nem apropriar, para devolver e para cansar, sobretudo para cansar. Tempo para o esgotamento que é esgotar-se sem que todas as alternativas estejam postas nem os caminhos apresentados por inteiro. Tempo para recusar toda vez que ouvir “empreender” como sinônimo de estilo de vida, e estilo de vida como sinônimo de qualquer coisa que se pareça com o modo particular c...