Pular para o conteúdo principal

Passo a passo

Publicado em 11 de maio de 2011 

E se eu me chamasse Perseu e você Ester? Quase não consigo imaginar no que essas alterações resultariam. Talvez em nada, mas talvez tudo fosse diferente e nós, pense bem nisso, nós seríamos outros. As brigas que tivemos até aqui, inclusive a de ontem, respeitariam uma regra estranha, e cada detalhe seria novo detalhe, equivalente ao anterior em qualidade mas substancialmente distinto, o que nos levaria a pensar de maneira algo pessimista que não vale a pena persistir nas mudanças. Estaríamos apenas parcialmente corretos.

Isso é menos um fato que uma crença. Duvido que as diferenças façam tanta diferença ao final, e digo isso sem pensar mais que dois segundos no assunto. Nunca fazem. Não é o mesmo que - “estamos no mesmo barco, relaxem”. Não o mesmo que admitir: tudo bem, não há desnível, vincos sociais ou ranhuras na superfície ideal. 

Vejam, como déspota esclarecido, não tolero o relativismo absoluto. 

“Queria ser tão claro quanto me fosse possível” era o que pediria se o calendário trouxesse amanhã o 24 de dezembro. Tão claro que jamais alguém entenderia outra coisa senão o significado exato do que dissesse, e mesmo assim seria insuficiente, o que implicaria em mais clareza e, por conseguinte, mais compreensão. O corolário disso seria uma cadeia infinita de causalidades sem nexo. 

Às vezes não parece haver qualquer regramento discernível nesse conjunto de coisas dispersas chamado vida. Estou errado, minha andorinha? 

Como ia tentando dizer, tinha essa vontade de escrever uma carta, todavia cartas estão fora de moda, daí pensei num e-mail, uma postagem simples no Twitter ou uma mensagem de celular assinada “simplesmente eu”. Uma inscrição no braço da carteira que seria lida em três dias, no mínimo, ou em três anos, no máximo. Pensei em outras coisas que agora não posso lembrar. 

Não me sinto bem esses dias, se me entende. Tédio, cansaço, fome, falta de conversa, falta de coragem, muitas horas diante do computador ainda tentando rabiscar aquele livro de que falei outro dia. Sem sucesso. Não obtive mais sucesso que Napoleão em Waterloo. Os empreendimentos de que me ocupo são barcas furadas, sou capitão dos projetos porosos.

Não, pode acreditar. É menos uma carta que uma prestação de contas semestral. 

O tanto que tenho refletido, você não sabe. Quando a gastrite permite, deito e fico pensando que seria realmente interessante se cada coisa estivesse no seu lugar, cada pessoa que vemos na praça de alimentação ou experimentando o sapato soubesse de antemão que papel teria de desempenhar na vida, ainda que de forma precária. A despeito do esforço, mesmo que não realizasse grande coisa. Nisso consistiria a diferença entre este mundo e outro plenamente cartesiano. 

Bom, débil e debilitado, digo que ontem (comecei a escrever ontem, terça-feira, e já é quarta-feira, quase manhã, posto que ônibus circulam e galos cantam) foi o dia em que a concentração varreu todos os poros sem deixar vagamente um só rastro. Contudo, esse tempo inteirinho era para dizer: estamos bem. As cortinas caíram, falta comida para os peixes, mas os jarros estão floridos e o botijão de gás só deve acabar no ano que vem. 

Também comprei aquele bolo de macaxeira, um pouco de presunto e dois pacotes de biscoito de banana com canela. Prometo cappuccino. Não sei o que fazer com os dois móveis novos e o velho cheque de 2,500 reais encostado atrás da geladeira, entretanto acredito que, juntos novamente, poderemos encontrar finalidade para as coisas. Para qualquer coisa, se quiser terminar de uma maneira que julgo romântica. 

Agora tenho certeza: é quase manhã.

 

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Museu da selfie

Numa dessas andanças pelo shopping, o anúncio saltou da fachada da loja: “museu da selfie”. As palavras destacadas nessa luminescência característica das redes, os tipos simulando uma caligrafia declinada, quase pessoal e amorosa, resultado da combinação do familiar e do estranho, um híbrido de carta e mensagem eletrônica. “Museu da selfie”, repeti mentalmente enquanto considerava pagar 20 reais por um saco de pipoca do qual já havia desistido, mas cuja imagem retornava sempre em ondas de apelo olfativo e sonoro, a repetição do gesto como parte indissociável da experiência de estar numa sala de cinema. Um museu, por natureza, alimenta-se de matéria narrativa, ou seja, trata-se de espaço instaurado a fim de que se remonte o fio da história, estabelecendo-se entre suas peças algum nexo, seja ele causal ou não. É, por assim dizer, um ato de significação que se estende a tudo que ele contém. Daí que se fale de um museu da seca, um museu do amanhã, um museu do mar, um museu da língua e por

Conversar com fantasmas

  O álbum da família é não apenas fracassado, mas insincero e repleto de segredos. Sua falha é escondê-los mal, à vista de quem quer que se dê ao trabalho de passar os olhos por suas páginas. Nelas não há transparência nem ajustamento, mas opacidade e dissimetria, desajuste e desconcerto. Como passaporte, é um documento que não leva a qualquer lugar, servindo unicamente como esse bilhete por meio do qual tento convocar fantasmas. É, digamos, um álbum de orações para mortos – no qual os mortos e peças faltantes nos olham mais do que nós os olhamos. A quem tento chamar a falar por meio de brechas entre imagens de uma vida passada? Trata-se de um conjunto de pouco mais de 30 fotografias, algumas francamente deterioradas, descubro ao folheá-lo depois de muito tempo. Não há ordem aparente além da cronológica, impondo-se a linearidade mais vulgar, com algumas exceções – fotos que deveriam estar em uma página aparecem duas páginas depois e vice-versa, como se já não nos déssemos ao trabalho d

Restos de sombra

Coleciono inícios, restos de frases, pedaços e quinas das coisas que podem eventualmente servir, como um construtor cuja obra é sempre uma potência não realizada. Fios e tralhas, objetos guardados em latas de biscoito amanteigado, recipientes que um dia acondicionaram substâncias jamais sabidas. Se acontece de ter uma ideia, por exemplo, anoto mentalmente, sem compromisso. Digo a mim mesmo que não esquecerei, mas sempre esqueço depois de umas poucas horas andando pela casa, um segundo antes de tropeçar na pedra do sono ou de cair no precipício dos dias úteis. Às vezes penso: dá uma boa história, sem saber ao certo de onde partiria, aonde chegaria, se seria realmente uma história com começo, meio e final, se valeria a pena investir tempo, se ao cabo de tantos dias dedicado a escrevê-la ela me traria mais felicidade ou mais tristeza, se estaria satisfeito em tê-la concluído ou largando-a pela metade. Enfim, essas dúvidas naturais num processo qualquer de escrita de narrativas que não são