Pular para o conteúdo principal

Desencantamento do mundo

 

Há dias me vi tragado por essa espiral cuja vertigem é uma artista (uma cantora bilionária do norte global) que, não sei se por traço da adicção digital de hoje em dia ou de um milenarismo de rede, arrasta uma multidão predisposta a celebrá-la como marca e pessoa, como CPF e CNPJ, como criadora e performance de si ao mesmo tempo.

Nesses momentos de transe ritual no qual se transformam as apresentações, que evocam eras como se o tempo entre uma produção e outra se processasse numa escala descolada do referencial terreno – o que colabora para a magnificação dessa ideia de grandiosidade a-histórica –, firma-se o que só pode ser entendido como uma fetichização da transcendência.

A artista é consumida, e não somente sua música, como passaporte para esse outro mundo. Mundo menos material e mais folclórico, com filtros e texturas que imprimem a sua existência uma camada esotérica e impalpável.

A indústria cultural, como campo autônomo e produtor de símbolos que se replicam como memes facilmente vendáveis, se organiza em torno de princípios de mercado como em qualquer outra esfera ou âmbito da economia, dos quais não se difere tanto assim, seja o automotivo ou camputacional.

Daí que Steve Jobs, por exemplo, tenha sido idolatrado como epítome de invenção, consagrando-se como reserva criativa a um passo do circuito do dinheiro e da arte, ou seja, do sagrado e do profano, numa indecidibilidade típica de quem opera nesse entrelugar, dele derivando seus ganhos e os maximizando.

O mesmo se dá frequentemente com ídolos da música, cujas obras são não apenas admiradas como dispositivo materialmente acabado (discos, CDs etc.), mas também durante as execuções ou shows, ocasião na qual o artista se funde com a obra.

Ali, não há mais um limite claro, um dentro e um fora, um nome civil e uma fantasia. Do artista, que agora encarna a obra, dando-lhe corpo e alma, exige-se que se porte em cumprimento a uma codificação moral rígida, projetada pelos fãs/consumidores/seguidores, para quem qualquer falha do criador será, consequentemente, interpretada como falha da obra em si, da qual procuram se afastar, enojados.

É nessas horas que se flagra uma espécie de desencantamento do mundo, quando os mecanismos que regem a construção da persona do artista se escancaram, seja por ato falho, seja por conduta calculada em momentos de crise, diante dos quais o criador, cada vez mais municiado de informação sobre o comportamento de seus clientes, decide ignorar apelos ou seja lá o que se espere dele, passando a agir em conformidade com seus ganhos.

O artista, então, frustra o seu público, não por corromper a autoimagem metodicamente esculpida de produto industrializado de cujo comércio ele é um zeloso acionista. Mas por fracassar como mantenedor do encanto, da magia e do filtro que asseguram a verossimilhança do espetáculo e, em última instância, dele mesmo.

Como uma espécie de pecado original, o erro macula a aura do criador, que está contaminada, não correspondendo em ato ao que se supunha a partir de canções nas quais um eu lírico pungente sofre e com o qual jovens do mundo inteiro se identificam.

A dor se revela no rompimento dessa identificação. É um choque, de fato, e esse choque se potencializa mais ainda em tempos como o nosso, de hipocondria moral e dependência afetivo-algorítmica, em que os laços entre o consumidor e o objeto se estreitaram para além do que se via quando o consumo talvez não se confundisse tanto com religião.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Trocas e trocas

  Tenho ouvido cada vez mais “troca” como sinônimo de diálogo, ou seja, o ato de ter com um interlocutor qualquer fluxo de conversa, amistosa ou não, casual ou não, proveitosa ou não. No caso de troca, porém, trata-se sempre de uma coisa positiva, ao menos em princípio. Trocar é desde logo entender-se com alguém, compreender seu ponto de vista, colocar-se em seu lugar, mas não apenas. É também estar a par das razões pelas quais alguém faz o que faz, pensa o que pensa e diz o que diz. Didatizando ainda mais, é começar uma amizade. Na nomenclatura mercantil/militar de hoje, em que concluir uma tarefa é “entrega”, malhar é “treinar”, pensar na vida é “reconfigurar o mindset” e praticar é “aprimorar competências”, naturalmente a conversa passa à condição de troca. Mas o que se troca na troca de fato? Que produto ou substância, que valores e capitais se intercambiam quando duas ou mais pessoas se põem nessa condição de portadores de algo que se transmite? Fiquei pensando nisso mais te...

Atacarejo

Gosto de como soa atacarejo, de seu poder de instaurar desde o princípio um universo semântico/sintático próprio apenas a partir da ideia fusional que é aglutinar atacado e varejo, ou seja, macro e micro, universal e local, natureza e cultura e toda essa família de dualismos que atormentam o mundo ocidental desde Platão. Nada disso resiste ao atacarejo e sua capacidade de síntese, sua captura do “zeitgeist” não apenas cearense, mas global, numa amostra viva de que pintar sua aldeia é cantar o mundo – ou seria o contrário? Já não sei, perdido que fico diante do sem número de perspectivas e da enormidade contida na ressonância da palavra, que sempre me atraiu desde que a ouvi pela primeira vez, encantado como pirilampo perto da luz, dardejado por flechas de amor – para Barthes a amorosidade é também uma gramática, com suas regras e termos, suas orações subordinadas ou coordenadas, seus termos integrantes ou acessórios e por aí vai. Mas é quase certo que Barthes não conhecesse atacarejo,...

Projeto de vida

Desejo para 2025 desengajar e desertar, ser desistência, inativo e off, estar mais fora que dentro, mais out que in, mais exo que endo. Desenturmar-se da turma e desgostar-se do gosto, refluir no contrafluxo da rede e encapsular para não ceder ao colapso, ao menos não agora, não amanhã, não tão rápido. Penso com carinho na ideia de ter mais tempo para pensar na atrofia fabular e no déficit de imaginação. No vazio de futuro que a palavra “futuro” transmite sempre que justaposta a outra, a pretexto de ensejar alguma esperança no horizonte imediato. Tempo inclusive para não ter tempo, para não possuir nem reter, não domesticar nem apropriar, para devolver e para cansar, sobretudo para cansar. Tempo para o esgotamento que é esgotar-se sem que todas as alternativas estejam postas nem os caminhos apresentados por inteiro. Tempo para recusar toda vez que ouvir “empreender” como sinônimo de estilo de vida, e estilo de vida como sinônimo de qualquer coisa que se pareça com o modo particular c...