Pular para o conteúdo principal

A praia ideal



Pensei bastante na distopia de uma praia sem sol, sem jangadeiro, sem peixes, iluminada unicamente por lâmpadas de LED e acondicionada por refrigeradores de ar, pavimentada com piso de porcelanato e orientada por corrimãos e passarelas que levam diretamente ao estacionamento do superprédio onde vivem os supermoradores de uma supercidade feita para poucos.

Nas salas espaçadas e agradabilíssimas dessas fortalezas pós-pandêmicas, superfamílias esperam uma superpizza que chegará em curtíssimo tempo levada por um empregado cujo salário não paga certamente o IPVA de um único pneu do supercarro desse superconsumidor.

Uma praia cujas areias recenderiam a aroma de shopping center, aquele adocicado do azulejo de essência facilmente identificável e que se aspira a léguas de distância, um cheiro inconfundível que encapsula todo um projeto de vida e assegura o conforto de que, ali, finalmente, se está a salvo e em paz como no átrio de uma igreja medieval isolada da peste.

Uma praia sofisticadamente noturna, privada, sem função prática que não a de preencher o recorte de vista já vendido previamente, ainda na planta do superapartamento de altíssimo padrão, como se o superpreço o elevasse naturalmente, motor de uma ascensão em direção ao topo, de onde qualquer um se sente divinamente transcendente.

Um sonho: habitar as alturas, ocupar o lugar entre as nuvens e da própria varanda descortinar qualquer latitude da metrópole espraiada. De lá a vista alcançar o morro, o farol velho, o campo onde joguei bola na infância, a casinha da minha vó, as ruas de terra batida e a escola onde estudei, o banco de praça onde namorei e a árvore em que trepávamos para comer azeitona fresca.

Dessa lonjura céu acima eu também me sentiria além de minhas capacidades e senhor de qualquer roteiro, lá eu desenharia uma vida fora de qualquer contingência urbana e alheio a essa coisa miúda que se chama coletividade.

Toda a história passaria muitos andares abaixo, ao pé da calçada. O pipoqueiro bem pequeno, quase um grão, o vendedor de milho reduzido a um ponto, o de algodão doce também miniaturizado, o jogo de altinha como um pingue-pongue entre formigas. A cidade inteira numa escala micro, as pessoas microrrelacionadas, como uma réplica dessas que se exigem como parte de um projeto qualquer, uma maquete de feira de ciências arquitetada às pressas.

Enquanto isso, de cima, se assiste ao filme mudo, espectador da experiência e regente da vida que se desenrola nos confins.

Leio no jornal que esse ideal de praia sem praia, asséptica e progressivamente destituída de tudo que a torna popular, é a mais nova conquista civilizacional, um salto em direção ao qual somente aquele 1% é capaz de promover.

Praia orgulhosamente “camboriuzada”, uma Dubai cabocla, sombreada pela cordilheira de edificações de nomes afrancesados ou latinos cuja função é meramente ornamental: atestar um lustre e arrogar a cada unidade condominial uma antiguidade aristocrática que não vem do berço, mas pela qual se pode pagar.

Essa praia pré-apocalíptica me assombra. Não porque lhe falte vento, já que o nosso vem de outra esquina e há de saber se distribuir de maneira mais fraterna entre fortalezenses. Mas porque tudo nela se perde nesse eclipse permanente, o sol tangido para sempre pela conjunção com o concreto.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Museu da selfie

Numa dessas andanças pelo shopping, o anúncio saltou da fachada da loja: “museu da selfie”. As palavras destacadas nessa luminescência característica das redes, os tipos simulando uma caligrafia declinada, quase pessoal e amorosa, resultado da combinação do familiar e do estranho, um híbrido de carta e mensagem eletrônica. “Museu da selfie”, repeti mentalmente enquanto considerava pagar 20 reais por um saco de pipoca do qual já havia desistido, mas cuja imagem retornava sempre em ondas de apelo olfativo e sonoro, a repetição do gesto como parte indissociável da experiência de estar numa sala de cinema. Um museu, por natureza, alimenta-se de matéria narrativa, ou seja, trata-se de espaço instaurado a fim de que se remonte o fio da história, estabelecendo-se entre suas peças algum nexo, seja ele causal ou não. É, por assim dizer, um ato de significação que se estende a tudo que ele contém. Daí que se fale de um museu da seca, um museu do amanhã, um museu do mar, um museu da língua e por

Conversar com fantasmas

  O álbum da família é não apenas fracassado, mas insincero e repleto de segredos. Sua falha é escondê-los mal, à vista de quem quer que se dê ao trabalho de passar os olhos por suas páginas. Nelas não há transparência nem ajustamento, mas opacidade e dissimetria, desajuste e desconcerto. Como passaporte, é um documento que não leva a qualquer lugar, servindo unicamente como esse bilhete por meio do qual tento convocar fantasmas. É, digamos, um álbum de orações para mortos – no qual os mortos e peças faltantes nos olham mais do que nós os olhamos. A quem tento chamar a falar por meio de brechas entre imagens de uma vida passada? Trata-se de um conjunto de pouco mais de 30 fotografias, algumas francamente deterioradas, descubro ao folheá-lo depois de muito tempo. Não há ordem aparente além da cronológica, impondo-se a linearidade mais vulgar, com algumas exceções – fotos que deveriam estar em uma página aparecem duas páginas depois e vice-versa, como se já não nos déssemos ao trabalho d

Cansaço novo

Há entre nós um cansaço novo, presente na paisagem mental e cultural remodelada e na aparente renovação de estruturas de mando. Tal como o fenômeno da violência, sempre refém desse atavismo e que toma de empréstimo a alcunha de antigamente, esse cansaço se dá pela falsa noção da coisa estudadamente ilustrada, remoçada, mas cuja natureza é a mesma de sempre. Não sei se sou claro ou se dou voltas em torno do assunto, adotando como de praxe esse vezo que obscurece mais que elucida. Mas é que tenho certo desapreço a essas coisas ditas de maneira muito grosseira, objetivas, que acabam por ferir as suscetibilidades. E elas são tantas e tão expostas, redes delicadas de gostos e desgostos que se enraízam feito juazeiro, enlaçando protegidos e protetores num quintal tão miúdo quanto o nosso, esse Siará Grande onde Iracema se banhava em Ipu de manhã e se refestelava na limpidez da lagoa de Messejana à tarde. Num salto o território da província percorrido, a pequenez de suas dimensões varridas