Pular para o conteúdo principal

A arte de Bolsonaro


O que fazer com a arte inspirada em Bolsonaro, essa que vai deixando aos poucos o Palácio da Alvorada e enchendo a traseira de caminhões de mudança, num desfile de bizarrias?

Falo desses quadros saturados estampando o ainda presidente e seu olhar vítreo dirigido ao horizonte, numa expressão que é um misto de enfado e prisão de ventre.

Ou, ainda, revelando o seu corpo derreado numa cadeira e um sol atrás, de um lado uma criança puxando-lhe a manga da camisa implorando por atenção e, do outro, um Cristo premido em dor com traços evidentes de arrependimento.

É uma arte curiosa, explicitamente de mau gosto, mas o gosto não é a categoria que interessa aqui. O que importa é a representação do chefe do Executivo feita nesses quatro anos. O que ela quer nos dizer realmente?

A escolha das cores, as sombras, a indumentária, o ambiente e a dentição perfeita e hiperclareada, em absoluto contraste com o modelo real e seus caninos amarelos e tortos.

Sabe-se que a arte nunca é fiel ao real, que o distorce e o transgride, amplia-o e o perverte, de modo a obter efeitos e satisfazer pulsões subjetivas. Me pergunto, então, a que demandas libidinais e projeções utópicas as telas bolsonaristas atenderiam.

E o que me vem à cabeça é que, desde o início, tudo isso era um pedido de socorro, desesperado e mal-disfarçado, que passou como homenagem grosseira. Explico.

Bolsonaro acolhendo animais a seus pés, por exemplo, gatinhos e cachorros persignando-se em oração por uma graça alcançada, mas qual? Nada é dito. A mensagem é propositadamente ambígua. Não se sabe se rogam a Deus para que o chefe do Planalto fique ou, tal qual na música, vá embora.

De toda a fauna retratada, a expressão de profundo desalento de um cãozinho me pegou. Suspenso pelo presidente, está com as patas e o focinho para baixo, as orelhas murchas e incongruentes, tristemente sem rimar, como se carregado pelo condutor da carrocinha a caminho do cadafalso.

Nele não há lugar para a felicidade. Não é como se estivesse num céu de preás, como a Baleia de Graciliano. O que se vê ali é um sentimento puro, desses que só os animais são capazes de manifestar.

Ironicamente, os bichinhos representados nessa fortuna pictórica jamais parecem contentes ou felizes, mas apreensivos e algo dissimulados, como se temessem pela própria vida ou pela vida de seus donos, só lhes restando o fingimento para garantir a sobrevivência.

Mais que isso: como se quisessem alertar os brasileiros e brasileiras de algo. Mas o quê?

É o caso daquele dramático esquilo (julgo que é um esquilo), de pelagem marrom e branca, com as patas dianteiras estendidas ao alto, a cabeça erguida aos céus, em súplica por uma intervenção divina e disposto ao sacrifício, desde que a humanidade seja preservada.

Mas de quem? A resposta talvez esteja ao lado, no homem com uma caneta Bic no bolso, que carrega uma criança nas costas, um menino fardado que esboça um sorriso por fora, mas por dentro está balbuciando um pedido de ajuda.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Trocas e trocas

  Tenho ouvido cada vez mais “troca” como sinônimo de diálogo, ou seja, o ato de ter com um interlocutor qualquer fluxo de conversa, amistosa ou não, casual ou não, proveitosa ou não. No caso de troca, porém, trata-se sempre de uma coisa positiva, ao menos em princípio. Trocar é desde logo entender-se com alguém, compreender seu ponto de vista, colocar-se em seu lugar, mas não apenas. É também estar a par das razões pelas quais alguém faz o que faz, pensa o que pensa e diz o que diz. Didatizando ainda mais, é começar uma amizade. Na nomenclatura mercantil/militar de hoje, em que concluir uma tarefa é “entrega”, malhar é “treinar”, pensar na vida é “reconfigurar o mindset” e praticar é “aprimorar competências”, naturalmente a conversa passa à condição de troca. Mas o que se troca na troca de fato? Que produto ou substância, que valores e capitais se intercambiam quando duas ou mais pessoas se põem nessa condição de portadores de algo que se transmite? Fiquei pensando nisso mais te...

Atacarejo

Gosto de como soa atacarejo, de seu poder de instaurar desde o princípio um universo semântico/sintático próprio apenas a partir da ideia fusional que é aglutinar atacado e varejo, ou seja, macro e micro, universal e local, natureza e cultura e toda essa família de dualismos que atormentam o mundo ocidental desde Platão. Nada disso resiste ao atacarejo e sua capacidade de síntese, sua captura do “zeitgeist” não apenas cearense, mas global, numa amostra viva de que pintar sua aldeia é cantar o mundo – ou seria o contrário? Já não sei, perdido que fico diante do sem número de perspectivas e da enormidade contida na ressonância da palavra, que sempre me atraiu desde que a ouvi pela primeira vez, encantado como pirilampo perto da luz, dardejado por flechas de amor – para Barthes a amorosidade é também uma gramática, com suas regras e termos, suas orações subordinadas ou coordenadas, seus termos integrantes ou acessórios e por aí vai. Mas é quase certo que Barthes não conhecesse atacarejo,...

Projeto de vida

Desejo para 2025 desengajar e desertar, ser desistência, inativo e off, estar mais fora que dentro, mais out que in, mais exo que endo. Desenturmar-se da turma e desgostar-se do gosto, refluir no contrafluxo da rede e encapsular para não ceder ao colapso, ao menos não agora, não amanhã, não tão rápido. Penso com carinho na ideia de ter mais tempo para pensar na atrofia fabular e no déficit de imaginação. No vazio de futuro que a palavra “futuro” transmite sempre que justaposta a outra, a pretexto de ensejar alguma esperança no horizonte imediato. Tempo inclusive para não ter tempo, para não possuir nem reter, não domesticar nem apropriar, para devolver e para cansar, sobretudo para cansar. Tempo para o esgotamento que é esgotar-se sem que todas as alternativas estejam postas nem os caminhos apresentados por inteiro. Tempo para recusar toda vez que ouvir “empreender” como sinônimo de estilo de vida, e estilo de vida como sinônimo de qualquer coisa que se pareça com o modo particular c...