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O dilema da Copa

 

De repente, o anúncio de convocação estampado na tela da TV se repetindo em looping. Lembro que há uma seleção de futebol que veste amarelo, ocasionalmente azul.

Jogadores reunidos num país qualquer do outro lado do mundo numa época em que maioria de nós já está organizando confraternizações de fim de ano.

Mas lá estão eles, catados em clubes da Europa, uma parte já com a fala engrolada pela mistura do léxico de origem e o estrangeiro. Neymar, por exemplo, fala brasileiro? Ou apenas a língua do dinheiro e da inconsequência, essa na qual ele aprendeu recentemente a se expressar tão bem?

No supermercado já é Natal, mas o noticiário impõe que, antes do panetone e do salpicão com farofa, tenhamos ainda outro evento, a Copa.

É uma mistura indigesta essa de expectativa ante uma vitória no futebol, ainda mais num ano como 2022 e com um time que tem Neymar como principal aposta, e o espírito natalino, que já vai convidando a exercícios de análise e temperança sobre a etapa que termina.

É cedo ainda, eu sei, mal chegamos à metade de novembro. E o pior, a bem da verdade, já passou. Podíamos estar agora mesmo atolados num bueiro de falso patriotismo, obscuridade existencial e desmesurada incerteza sobre o futuro imediato.

Mas cá estamos, apenas remotamente receosos quanto ao sucesso do selecionado de Tite e já antevendo o bufê do dia 24 de dezembro. Primeiro a casa da mãe, depois a da sogra e, se sobrar energia, alguma comemoração mais tarde.

É fato incontroverso e também um alívio que o ano está se encerrando de verdade. Não é história de que se ouve falar, uma fake news espalhada no zap pela tia que se ocupou nos últimos 12 meses em disseminar contos da carochinha enquanto assombrava todo mundo com aquele olho em formato de bandeira do Brasil vertendo uma lágrima no canto.

E agora que cheguei aqui, tenho de admitir: esse é realmente o problema. Esse olho me impede de torcer totalmente pela seleção, de me integrar novamente nessa coletividade. Esse Sauron tupiniquim que me perseguiu por quatro anos, essa anomalia estética, essa agressão visual que sintetiza numa só imagem todo desmazelo pelo qual estávamos passando.

Em todo grupo de conversa, nos comentários das redes, na caixa de postagens de matérias que escrevia, num morador do condomínio digitando às 2 da madrugada, lá estava ele: o tal olho com íris azul e esclera amarela, as pálpebras verdes em redor como se pertencentes a um Hulk mal alimentado, chorando não copiosamente, mas apenas uma lágrima solitária através de um filete.

Durante esse tempo, o olho pavoroso foi um dos ícones que me desafiaram a querer entender como foi que o Brasil tinha saído de 2018 diretamente para a boleia do “patriota do caminhão”. Entre as duas figuras, o olho e o patriota, há de haver algum nexo.

Mas isso é coisa pra outra conversa, pra outro momento. Eu, por ora, me debato sobre o que fazer com esse time de futebol. E nem falo da escalação do Daniel Alves, cuja participação no campeonato faz tanto sentido quanto a de Bruno de Luca nos programas de auditório do início dos anos 2000.

Por mim, tomava uma medida drástica e adiava a Copa. Ia direto para o Natal e, se possível, para o carnaval. Saltava sem peso na consciência esse período em meio ao qual a camisa amarela e o olho hediondo se tornaram quase sinônimos.

Quando tudo caísse no esquecimento, a gente voltava, agora livres pra torcer pelo Brasil e, se tivéssemos sorte, com o Neymar já de chuteiras penduradas – mas talvez ainda sem ter declarado os bens à Receita Federal.

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