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A estética do barraco grã-fino



Um barraco, nesse sentido de briga generalizada, é sempre um barraco, seja de rico ou de pobre. Naturalmente há pontos de contato entre o bafulê numa churrascaria do Zé Walter e outro na “área nobre”, mas existem muitas dessemelhanças também.

Num barraco de rico, por exemplo, há sempre o apagamento das personagens, que se traduz num certo pudor de nomear e situar geograficamente o enredo e os implicados na fuzarca. Publicamente, quase nunca se sabe quem fez o quê e por que razão, embora, no privado, tudo se conheça e fale à vontade.

Entre os endinheirados, evita-se a repercussão mais do que o episódio em si. O excesso preocupa porque dá na vista e prejudica os negócios, do qual fazem parte os arranjos matrimoniais. Nesse mundo que vive para o alheio, teme-se sobretudo a ruptura de um pacto de faz-de-conta que sustenta aparências e preserva máscaras.

À baderna propriamente dita, segue-se uma verdadeira operação abafa, cujo principal objetivo é escamotear os motivos pelos quais fulano arremessou uma cadeira em beltrano, enquanto sicrana manuseava a câmera do celular com perícia e distanciamento cinematográfico, registrando essa coreografia do caos no clubinho privé.

Achou confuso? É porque é mesmo, e essa é somente uma das tantas marcas distintivas do barraco de luxo. Se a desavença de periferia se dá às claras e os seus gatilhos são sabidos de antemão (uma dívida, uma traição etc.), a dos ricos habita uma zona cinzenta, um “chiaroscuro” que não permite discernir o elemento deflagrador em torno do qual os atores se engalfinham.

Num barraco suburbano, pelo contrário, toda informação é exposta, ninguém é poupado de uma devassa. Minutos depois, a polícia chega para “arbitrar” o conflito. A essa altura, as imagens estão circulando. Todos os corpos estão ali, dando-se a ver, mesmo que à revelia. Não se respeita a dimensão do privado.

Daí a frase imperativa emanada pelo agente da segurança estatal: “circulando, circulando”. A ordem não deixa dúvidas sobre quem disciplina aquele espaço.

Na confusão de grã-fino, a polícia quase nunca é acionada. Tudo se resolve no âmbito da pessoalidade, jamais no da coletividade, cujas leis não têm vigência ali. Não há quem imponha o “circulando”, porque uma das faculdades de quem tem grana é saber-se livre para circular por onde quiser, mesmo quando desrespeite os códigos.

Mas há outras diferenças entre esses dois tipos de barracos. Uma delas tem relação com os sobrenomes. Numa rinha de precarizados, não interessa quem é Silva ou Pinto, Araújo ou Braga, Magalhães ou Holanda. Os envolvidos se originam em algum bairro próximo (Passaré, Bom Jardim, Joaquim Távora) ou no interior, e o ramo mais rico da família é obra de alguém que conseguiu escapar a esse roteiro, vencendo na vida pelo comércio ou pelos estudos.

Já no perfumado octógono do PIB alencarino a lógica se inverte. Importa saber, mais do que o feito, quem fez. Que família motivou tal diatribe? Que Rocha, Nogueira ou Barbosa (todos fictícios) se meteu no badalado arranca-rabo que mobilizou a cidade inteira no fim de semana? E, tão relevante quanto, qual foi o estopim?

Porque o fato gerador é um ponto sem o qual toda história é incompleta no circuito da alta sociedade, que, nesse aspecto, jamais deixa de ser provinciana, ainda que moradora do último andar do prédio com elevador exclusivo para o carro.

Por ironia, esse barraco acaba se convertendo em espetáculo, não porque constitui fenômeno raro, mas porque contraria uma expectativa social que se baseia no erro bastante comum de supor que os ricos são mais civilizados do que os pobres. Ledo engano.

Seja numa disputa de “onion rings” ou no cercadinho VIP durante jogo do Brasil na Copa do Mundo, os muito ricos estão sempre dispostos a provar que, sob as camadas de malhas finas e uma dinheirama gasta em procedimentos de beleza, todo mundo é igual.
 

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