Pular para o conteúdo principal

Marvelização do mundo


Há um processo em curso, o da marvelização do mundo e das relações, que consiste em tomar cada mínimo aspecto da vida como se fosse um desses filmes em que homens vestem cueca por cima da calça para enfrentar vilões exuberantemente marcados pela maldade, cada um deles com características e predicados morais muito bem definidos.

O paladino anticorrupção, o macho tecnicamente infalível, o militar mímico, o sumo-bondoso, o engomadinho, o calça-apertada e por aí vai, com capas e atributos para todos os gostos e bolsos.

Da guerra à política, de Putin a Biden, de Bolsonaro a Lula, a régua rasa da marvelização abarca tudo, produzindo um efeito de proximidade enganosa que faz com que todo e qualquer usuário de rede social se sinta imediatamente um analista de qualquer assunto, alguém apto a tecer comentários sobre um embolado cenário internacional diante do qual especialistas de todos os cantos do globo se sentem encafifados, sem saber o que dizer.

Mas não ele, o “Marvel boy”, um inveterado consumidor de filmes e habitué das salas de cinema, onde aprendeu a dissecar cada pormenor de tramas igualmente extensas e complexas com as quais agora ele faz comparações ante o ataque dos blindados russos ou o surgimento de uma nova variante da Covid.

Com destemor, duela publicamente esgrimindo argumentos ilustrados com passagens de “Vingadores” e “Thor”, mas sem deixar de lado “Guardiões da galáxia” e “Homem-Aranha”, com que se completa o seu araque-verso.

Nele, sai o Homem de Ferro, entra o Zelensky, que encara não Putin, mas o Thanos eslavo, essa entidade maléfica e quintessencial em que se depositou todo pecado e para a qual convergiu aquele medo ancestral do ocidente em relação ao oriente – tudo devidamente pasteurizado.

Pronto, está preparado o enredo do filme, um enlatado de fácil consumo porque difundido largamente, mas eficaz no intuito de propagar uma – me permitam uma vez – narrativa.

O perfil por trás da arenga é conhecido: normalmente homem, na casa dos 25 aos 40 anos, assíduo nas redes e sempre disposto a querelar duramente quando as competências do seu herói são colocadas em xeque, tais como a maciez do cabelo do Deus do Trovão ou as virtudes de Tony Stark.

E o mesmo vale para a política nacional, cada vez mais marvelizada, ou seja, contaminada pela lógica do binarismo dos quadrinhos, em que o varão continua sendo o personagem sem máculas ou nódoas na sua conduta, e a seus adversários cabe o peso de carregar a falha. 

De maneira que a marvelização, neste 2022 às vésperas de uma eleição, não é mais apenas uma ética, mas uma estética, uma escola de pensamento, um meio pelo qual o real é filtrado e decodificado, uma disciplina que desde já deveria estar sendo ensinada nas escolas, ao lado do pós-modernismo e do estruturalismo.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Trocas e trocas

  Tenho ouvido cada vez mais “troca” como sinônimo de diálogo, ou seja, o ato de ter com um interlocutor qualquer fluxo de conversa, amistosa ou não, casual ou não, proveitosa ou não. No caso de troca, porém, trata-se sempre de uma coisa positiva, ao menos em princípio. Trocar é desde logo entender-se com alguém, compreender seu ponto de vista, colocar-se em seu lugar, mas não apenas. É também estar a par das razões pelas quais alguém faz o que faz, pensa o que pensa e diz o que diz. Didatizando ainda mais, é começar uma amizade. Na nomenclatura mercantil/militar de hoje, em que concluir uma tarefa é “entrega”, malhar é “treinar”, pensar na vida é “reconfigurar o mindset” e praticar é “aprimorar competências”, naturalmente a conversa passa à condição de troca. Mas o que se troca na troca de fato? Que produto ou substância, que valores e capitais se intercambiam quando duas ou mais pessoas se põem nessa condição de portadores de algo que se transmite? Fiquei pensando nisso mais te...

Atacarejo

Gosto de como soa atacarejo, de seu poder de instaurar desde o princípio um universo semântico/sintático próprio apenas a partir da ideia fusional que é aglutinar atacado e varejo, ou seja, macro e micro, universal e local, natureza e cultura e toda essa família de dualismos que atormentam o mundo ocidental desde Platão. Nada disso resiste ao atacarejo e sua capacidade de síntese, sua captura do “zeitgeist” não apenas cearense, mas global, numa amostra viva de que pintar sua aldeia é cantar o mundo – ou seria o contrário? Já não sei, perdido que fico diante do sem número de perspectivas e da enormidade contida na ressonância da palavra, que sempre me atraiu desde que a ouvi pela primeira vez, encantado como pirilampo perto da luz, dardejado por flechas de amor – para Barthes a amorosidade é também uma gramática, com suas regras e termos, suas orações subordinadas ou coordenadas, seus termos integrantes ou acessórios e por aí vai. Mas é quase certo que Barthes não conhecesse atacarejo,...

Projeto de vida

Desejo para 2025 desengajar e desertar, ser desistência, inativo e off, estar mais fora que dentro, mais out que in, mais exo que endo. Desenturmar-se da turma e desgostar-se do gosto, refluir no contrafluxo da rede e encapsular para não ceder ao colapso, ao menos não agora, não amanhã, não tão rápido. Penso com carinho na ideia de ter mais tempo para pensar na atrofia fabular e no déficit de imaginação. No vazio de futuro que a palavra “futuro” transmite sempre que justaposta a outra, a pretexto de ensejar alguma esperança no horizonte imediato. Tempo inclusive para não ter tempo, para não possuir nem reter, não domesticar nem apropriar, para devolver e para cansar, sobretudo para cansar. Tempo para o esgotamento que é esgotar-se sem que todas as alternativas estejam postas nem os caminhos apresentados por inteiro. Tempo para recusar toda vez que ouvir “empreender” como sinônimo de estilo de vida, e estilo de vida como sinônimo de qualquer coisa que se pareça com o modo particular c...