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Tá querendo chover

 

“Tô querendo gripar”, “tá querendo chover”... Há um uso particular da locução verbal “estar querendo”, empregada para denotar falsa vontade, não um desejo, mas o contrário. Afinal, ninguém quer adoecer, tampouco a chuva é expressão do arbítrio, de escolha, mas fenômeno climático que de repente se precipita, queira-se ou não.

E, no entanto, usamos como quem admite aspiração secreta, fruto de sabe-se lá que forças íntimas que nos levam a querer até mesmo o que não devíamos, o que nos faz mal e, em última análise, deveria permanecer longe, como uma gripe.

Mas é assim com a língua, logo estamos por aí falando de um jeito que anuncia não a doença, mas seu começo. Como se farejássemos o início de algo, que ainda não está ali, mas já está. Presente nesse estar querendo, que, de tão esticado na ação, que se anuncia para logo, embora não se saiba ao certo para quando, vai adiando o fato em si, seja ele bom ou ruim.

Estar querendo é mais desejo do que coisa real? Não sei, mas, no falar da gente, ora é uma coisa, ora outra, e mesmo no caso de uma gripe existe por vezes essa vontade mal-disfarçada de que venha, mas que seja passageira, inofensiva.

Estar querendo é jogo vocabular, manejo de incertezas, uma estratégia discursiva que faz nascer a dúvida no ato mesmo da fala. Tá querendo chover... O que significa ao pé da letra? Que vai chover em algum momento, que é possível que chova, mas não agora, não hoje, talvez nem amanhã ou depois?

Aqui pra mim, que é outro jeito de falar nosso, tá querendo é prima daquela outra expressão curiosa: vai desculpando qualquer coisa... Novamente a locução, forma usada para prolongar a ação, situá-la num futuro indeterminado – vai desculpando.

Quando, hoje ou amanhã? É também mistério, matéria de chão movediço, como é sempre o dizer da gente no dia a dia, no cotidiano, quando recorremos a palavras e frases inteiras que se abrem e são como portais mágicos, tanto pela falta de substância metafórica quanto pela vacuidade referencial.

Quando se diz tô querendo, a vontade pode ter passado antes de a frase chegar ao fim. Pode ser que nem houvesse mesmo vontade, apenas o desejo de que existisse algo que não existe. Uma projeção do desejo, num jogo de espelhos.

Tô querendo não anuncia nada, nem chuva nem gripe, mas gostamos dela porque é simpática. Admite-se indiretamente que se quer, mesmo que não se queira. É uma dualidade com a qual brincamos, da qual a língua se alimenta, como tantas outras.

Quando se fala que tá querendo chover, em bom “cearensês”, talvez o céu esteja formado, o horizonte carregado daquele cinza bonito. Ou quem sabe nem chegue a tanto, seja só a impressão na vista de quem vê, a chuva mais no olho do que no céu.

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