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O pequeno chato

 

Será preciso ainda um bom tempo para entender o tamanho do estrago que “O pequeno príncipe” causou ao mundo ao oferecer uma cartilha com falsas lições que se aplicam a qualquer situação, em qualquer tempo, para qualquer pessoa, de modo praticamente inesgotável, prestando-se a todo tipo de aconselhamento.

Do fiasco amoroso ao financeiro, da morte de um bicho de estimação a uma catástrofe global, do fim do relacionamento ao vácuo de sentido no mundo virtual, tudo encontra eco no livrinho de Antoine de Saint-Exupéry, que não tem culpa por nada disso.

O autor simplesmente escreveu-o e o jogou ao léu, ou seja, fez o que qualquer escritor faz, não sendo responsável pela maneira como cada leitor em cada época irá se apropriar e dar sentido ao que lê.

O problema é que, tão logo foi publicado, “O pequeno príncipe” se tornou uma máquina de converter adultos em crianças, não num sentido positivo, como gostaria de ter visto o personagem do livro, mas no negativo mesmo, com a infantilização campeando solta entre esses cavalões e cavalonas de trinta e poucos, como diria minha vó.

As vítimas da obra se sucedem à medida que a brochura de 1943 é interpretada à risca como um conto moral, uma reunião de axiomas cuja função é iluminar toda encruzilhada social, política e afetiva, e não como a história de um menino e de um homem mais velho, uma narrativa baseada puramente em fantasia com alcance certamente amplo, mas não irrestrito, tampouco pronta para ser usada como peça de roupa, manuseável ao simples toque, ajustável a qualquer discurso e situação.

O utilitarismo matou “O pequeno príncipe”, a pressa em convertê-lo em biblioteca de citações, a ansiedade para convocar ensinamentos pescados e descontextualizados e apresentá-los com candura como grande aprendizado ou fonte de conhecimento transcendental em trabalhos de conclusão de curso ou Powerpoint com os objetivos e metas da empresa.

Mataram-no as lâminas com trechos copiados em letra cursiva a pretexto de extrair verdade de situações corriqueiras, transformando qualquer conversa banal, do café da manhã à mesa de bar, num tormento, num suplício ao qual não se vive, mas sobrevive.

Exagero? Talvez. Mas quem, afinal, suportaria por mais de cinco minutos esse papo de colecionar borboletas ou de que o essencial é invisível aos olhos? Imagine-se dividindo uma fila de banco ou uma mesa na padaria com um tipo assim, com um sorriso benevolente e curioso às 7 horas da manhã, horário em que 99% da humanidade está de mau humor.

O que nas mãos de crianças soa bonitinho e fofo, nas de um adulto, porém, causa ânsia de hostilidade, um desejo irrefreável de sacudir o dito-cujo ou a dita-cuja e lhe pedir encarecidamente que tenha piedade de nós, que já somos obrigados a suportar tanta coisa no dia a dia, de Bolsonaro a Paulo Guedes.

E agora temos de lidar com esse excesso de otimismo e de autenticidade postiça, vazada em elemento artificioso, feita para convencer sabe-se lá quem de coisas que fariam qualquer terapeuta saltar no abismo, como “tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas”.

Eternamente responsável? Nem minha mãe é eternamente responsável por mim. Nem a tia Giovana, professora de português da 4ª série, é eternamente responsável por mim, e olhe que ela me cativou, tanto que não a esqueci até hoje.

Mas nem por isso eu a procuro para que pague os meus boletos, já que, no mundo adulto, quitar as dívidas do outro é também uma forma de dizer eu te amo ou eu me importo contigo, principalmente nestes tempos de inflação galopante e gasolina a 7 reais.

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