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Atleta fracassado

 

Assistir Olimpíada é lembrar de cada um dos esportes em que fracassamos, do judô à capoeira, passando pela dança e natação e futebol de salão e corrida, enfim, a lista é inesgotável. E assistir com a mãe ao lado, como fiz nos últimos dias, piora ainda mais.

Tá vendo, filho, podia tá ganhando essa medalha do vôlei.

Mãe, tenho 1,73m, não ganharia nada além de bola na cara.

Mas e a natação?

E assim a conversa se segue. Ela sabe que natação é meu ponto fraco, mais ainda que futebol. Sou atleta frustrado, sim. Tenho o espírito competitivo, mas não a disciplina de quem um dia sonha ganhar qualquer coisa.

Lembro de uma corrida no bairro organizada pela associação local. O circuito era uma volta pela rua, saindo da sede da instituição e voltando a ela. Largada dada, avancei na frente dos outros, mas precisei parar na esquina seguinte.

Do contrário, não estaria aqui para contar a história.

A meu favor devo dizer que nunca gostei de correr, muito menos de correr sem motivação, como é o caso de alguém que desembesta numa rua sem nada mais para estimulá-lo além do fato de que precisa continuar a correr e superar sabe-se lá que medos ou traumas ou limites.

Os meus limites sempre foram claros, eu não precisava de esporte para vencê-los. Eu não queria vencê-los, gostava deles. Era ruim pra correr, mas razoável jogando bola.

Na escola, fui da seleção. Acordava às 5h da manhã pra treinar. Encontrava os amigos no caminho com um saco de leite e pão, que dividíamos antes de começar a partida.

Isso dá a exata dimensão de como eu levava aquele troço a sério: eu levantava quase de madrugada pra jogar bola. Isso mesmo.

Hoje não faria isso nem se minha D2 estivesse marcada pra 7h, imagina às 5h.

Apesar do esforço, não avancei no futebol. Tinha algum talento, sem dúvida, mas faltava aquela disposição, aquela vibração das células pedindo: cara, eu tenho que fazer isso. Eu não sentia nada parecido, não era um apaixonado, e quem compete tem de estar permanentemente em estado passional.

Na verdade, nenhum esporte me causava senão uma leve preguiça.

A exceção era a bicicleta. Sim, eu poderia ter sido um competidor, um aventureiro que desbrava montanhas numa bike ou apenas um praticante ocasional de ciclismo, sem nada envolvido nisso. A bicicleta conjugava tudo de que eu mais gostava: velocidade, solidão e repetição.

Mover as pernas e continuar, mover e continuar, mover e continuar, tudo isso olhando pra frente, sempre pra frente. A bicicleta me obriga a olhar sempre pra frente. Eu poderia desenvolver isso e transformar num livro tipo ENFODERE-SE, mas, assim como não tinha talento pra esporte, não tenho pra ganhar dinheiro.

De modo que as Olimpíadas mexem pra caramba quando começo a ver, sozinho ou ao lado da mãe. Eu ligo na TV, deixo o Galvão se esgoelar e acompanho aquele martírio, aquela via crucis do atleta de alto rendimento cujo salto ou nado ou pulo ou pirueta ou pegada do quimono é sempre decisivo. Tudo à beira do precipício ou da glória.

Como eu queria ter sido um judoca, penso assistindo a uma lutadora brasileira, apenas pra fantasiar depois sobre como teria sido massa jogar vôlei ou handebol ou peteca ou esgrima.

Sim, esgrima, esse esporte que vemos apenas pelo prazer de nunca saber quando é ponto e quando não é, porque os golpes são tão velozes que nunca identificamos ao certo quem ganhou e quem perdeu, e nessa confusão está o deleite do público leigo.

É diferente da natação, que sempre deixa muito evidente quem está perdendo na piscina. É aquele deixado pra trás. Ou do futebol, minha terceira paixão, atrás apenas da bicicleta e do jogo de bila.

Pronto, talvez se as Olimpíadas tivessem jogo de bila eu pudesse me tornar um atleta olimpiano, um Phelps do canelau, um Djokovic da molecagem.

Minha mãe iria parar tudo que estivesse fazendo pra me ver olhar fixamente a bila do adversário e, numa angulação impressionante, meio Roberto Carlos na Copa de 1998, meio Petkovic em 2001, uma curva impossível, deslocar o oponente e arrebatar a medalha.

E ninguém poderia fazer chacota só porque seria uma medalha no jogo de bila. Era olímpica, isso é o que importa.

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