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Aniversário

No dia do meu aniversário de 41 anos, acordei achando que estava no Titanic prestes a afundar. Não é uma figura de linguagem, tampouco exagero retórico. Parte da casa estava submersa.

Enquanto dormíamos, um vazamento no banheiro fizera a água rapidamente se espalhar pelo apartamento, chegando também ao quarto da minha filha. Primeiro, ouvi gotas caindo a intervalos regulares, depois mais rapidamente e finalmente o jorro encorpado.

Ainda entre sono e vigília, supus que minha esposa lavasse as mãos, mas era uma da manhã. Não lembro de que tivesse insônia e andasse pelos corredores com desejos de asseio em meio à madrugada, então descartei essa possibilidade, o que me deixou ainda mais preocupado. Levantei de um salto.

Dei com a água já a meio caminho da sala, como uma visita inesperada, o que deve ter acionado em mim um instinto de proteção ao qual eu ainda não havia precisado recorrer desde que me tornei pai.

A partir daí, agi como um marinheiro a quem fora dada a missão de impedir que o barco afundasse.

Lembram-se do Titanic depois de colidir com o iceberg, com seus pavimentos lenta mas inexoravelmente submergindo enquanto a água avançava e a tripulação, às voltas com o problema, não sabia o que fazer? A coisa estava nesse pé.

Uma válvula da descarga se rompera, e agora a água escorria do encanamento direto para o piso, acumulando e chegando em ondas cada vez maiores.

A situação era preocupante, verdade, mas não catastrófica. Tentei me tranquilizar.

De imediato, pensei nas soluções mais simples e também mais estúpidas: desligar a geral, enfiar um pano no cano e voltar a dormir. Logo isso se mostrou não apenas impraticável, mas também um fator de agravamento do sinistro, já que, feito o desligamento da geral e vedado precariamente o cano, experimentei testar a descarga apertando-a uma única vez – o suficiente para que o volume d’água aumentasse.

Pra encurtar a história, que é muito longa e pretendo desenvolvê-la posteriormente numa novela cujo objetivo é tirar proveito dessa quase desgraça, fomos dormir às 4h da manhã, exauridos depois de três horas e meia ininterruptas de luta contra essa força da natureza.

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