Pular para o conteúdo principal

Caderno do esquecimento

Anoto tudo que esqueço, cada pequeno acontecimento, o mínimo revés ou contratempo. Tenho fixação pelo gesto suspenso, o ato que falha, a falta, o elemento que se extravia.

Por isso o registro paciente do que não há, a anotação deliberada daquilo que tardou. Uma escrita que retrocede, não avança, quando muito gira sobre o próprio eixo, como planta que nunca se desenraíza e vento represado.

Lembro de ainda menino fazer a caligrafia. Desenhava a letra, caprichava a cada curva da vogal ou consoante, a mãe ao lado mantendo a seu alcance também um caderno no qual ia delineando sua escrita, que eu tentava imitar, sem conseguir.

Capa preta, impressão de que encerrava ali uma vida que se recusava a compartilhar comigo. Segredos, sim, mas por que deixá-los à vista? Eu não sabia. Tampouco a mãe dizia, ao final guardava na cômoda ou o carregava consigo quando ia ao centro da cidade, de onde passava horas para voltar.

Lembro de escrever: o que escreve a mãe? Era uma brecha que tentava ocupar, o espaço vazio que não incomodava, pelo contrário, despertava em mim essa curiosidade de, escrevendo, descobrir o que a mãe diria de si.

Na escola tinha orgulho de contar que tinha uma mãe cuja vida não se revelava por completo, uma mãe que tinha um caderno proibido, uma mãe cheia de lacunas, que não era como as outras mães, sempre cristalinas e expostas, mães de transparência evidente e incontestável.

Depois parei de escrever, de rascunhar essas ninharias. Perdi todos os volumes preenchidos durante esse tempo. A mãe também se desfez, atirou fora as folhas, os colecionadores embolorados, talvez tenha rasgado tudo. Entre nós sempre chega esse momento em que rasuramos todo o passado, como se o revogássemos.

Um dia, era Natal, lhe perguntei sem volteios: o que a mãe dizia ali? Levantou-se, recolheu pratos e copos, anunciou que tinha sono e foi deitar-se.

Antes, respondeu que era bobagem, não lembrava, mas que eu não devia me preocupar com isso porque na época eu era um menino e ela, uma mulher, e que mulheres têm suas questões que não interessam a mais ninguém, sobretudo a uma criança como eu era.

Talvez fossem desenhos, acrescentou, talvez apenas riscos que eu punha no papel de ponta a ponta, talvez fosse a maneira que encontrava de fazer o tempo correr.

Ou talvez fossem palavras mesmo, de verdade, eu arrisquei, ao que a mãe respondeu com um sorriso, o mesmo que não diz que sim ou que não.

Antes de ontem, sonhei que recuperava o caderno, a capa já muito desgastada e as folhas amarelas. Eu o depositava em cima da mesa. Em seguida, exibia-o a minha filha, que abria as páginas com seus dedos finos. Dentro dele, linhas e linhas de palavras inventadas, um alfabeto próprio que nem eu nem ela entendíamos.

Mesmo no sonho preservava o seu segredo.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Trocas e trocas

  Tenho ouvido cada vez mais “troca” como sinônimo de diálogo, ou seja, o ato de ter com um interlocutor qualquer fluxo de conversa, amistosa ou não, casual ou não, proveitosa ou não. No caso de troca, porém, trata-se sempre de uma coisa positiva, ao menos em princípio. Trocar é desde logo entender-se com alguém, compreender seu ponto de vista, colocar-se em seu lugar, mas não apenas. É também estar a par das razões pelas quais alguém faz o que faz, pensa o que pensa e diz o que diz. Didatizando ainda mais, é começar uma amizade. Na nomenclatura mercantil/militar de hoje, em que concluir uma tarefa é “entrega”, malhar é “treinar”, pensar na vida é “reconfigurar o mindset” e praticar é “aprimorar competências”, naturalmente a conversa passa à condição de troca. Mas o que se troca na troca de fato? Que produto ou substância, que valores e capitais se intercambiam quando duas ou mais pessoas se põem nessa condição de portadores de algo que se transmite? Fiquei pensando nisso mais te...

Atacarejo

Gosto de como soa atacarejo, de seu poder de instaurar desde o princípio um universo semântico/sintático próprio apenas a partir da ideia fusional que é aglutinar atacado e varejo, ou seja, macro e micro, universal e local, natureza e cultura e toda essa família de dualismos que atormentam o mundo ocidental desde Platão. Nada disso resiste ao atacarejo e sua capacidade de síntese, sua captura do “zeitgeist” não apenas cearense, mas global, numa amostra viva de que pintar sua aldeia é cantar o mundo – ou seria o contrário? Já não sei, perdido que fico diante do sem número de perspectivas e da enormidade contida na ressonância da palavra, que sempre me atraiu desde que a ouvi pela primeira vez, encantado como pirilampo perto da luz, dardejado por flechas de amor – para Barthes a amorosidade é também uma gramática, com suas regras e termos, suas orações subordinadas ou coordenadas, seus termos integrantes ou acessórios e por aí vai. Mas é quase certo que Barthes não conhecesse atacarejo,...

Projeto de vida

Desejo para 2025 desengajar e desertar, ser desistência, inativo e off, estar mais fora que dentro, mais out que in, mais exo que endo. Desenturmar-se da turma e desgostar-se do gosto, refluir no contrafluxo da rede e encapsular para não ceder ao colapso, ao menos não agora, não amanhã, não tão rápido. Penso com carinho na ideia de ter mais tempo para pensar na atrofia fabular e no déficit de imaginação. No vazio de futuro que a palavra “futuro” transmite sempre que justaposta a outra, a pretexto de ensejar alguma esperança no horizonte imediato. Tempo inclusive para não ter tempo, para não possuir nem reter, não domesticar nem apropriar, para devolver e para cansar, sobretudo para cansar. Tempo para o esgotamento que é esgotar-se sem que todas as alternativas estejam postas nem os caminhos apresentados por inteiro. Tempo para recusar toda vez que ouvir “empreender” como sinônimo de estilo de vida, e estilo de vida como sinônimo de qualquer coisa que se pareça com o modo particular c...