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Dividindo apê com o carro

 Foi com indisfarçável descrença que recebi a notícia de que, num futuro próximo, o cearense endinheirado estaria em condições de dividir o apartamento não só com o amigo da faculdade, com um parente, com a namorada ou o namorado, com a esposa e os filhos, com a samambaia e os gatos, mas também com o próprio carro.

Objeto hipervalorizado e investido de uma áurea fálica indissolúvel, o carro, em vez de deixado de lado na garagem, no térreo do prédio ou ao relento, agora estaria ao lado, como uma peça de arte ou totem moderno da vida urbana. Seria mais de casa do que as empregadas domésticas, que já são quase da família e até dormem no trabalho, não é mesmo?

Mas o carro na sala faz da casa uma garagem ou da garagem uma casa? Eis a primeira dúvida existencial que me surgiu, uma questão ociosa e meramente especulativa, por duas razões: não tenho R$ 4 milhões e, se tivesse, não gastaria assim. E mal consigo suportar a ideia de uma bicicleta no corredor, de modo que tenho preferido deixá-la pegando chuva e sol nos fundos do edifício.

O que interessa aqui, porém, é entender as repercussões desse gesto matutamente transgressor da inteligência nativa, a mesma responsável por obras da arquitetura que simulam navios espichando-se metros acima enquanto privatizam a visão do litoral fortalezense.

E que gesto é esse? O que consiste em fazer subir um trambolho em quatro rodas pesando toneladas e instalá-lo no ambiente doméstico, não mais como elemento inerentemente da rua, mas como parte dessa paisagem afetiva e das relações com os de casa, como um PET cujo filhote custasse dezenas de milhares de reais.

Falo matuto porque essa história de morar com o carro me fez lembrar de quando ganhei minha primeira bike nova, da qual não largava nem na hora de dormir, quando a punha na cama e a cobria com um lençol e no dia seguinte checava bem cedo se estava tudo bem com ela, se ainda continuava lá.

Ora, o edifício de apartamentos de luxo com vaga de garagem dentro da sala, uma promessa da vanguarda artística local, segue a mesma lógica deslumbrada de quem, achando-se em posse de qualquer objeto de maior valor, dele não quer se apartar, decidindo mantê-lo à vista de todos, inclusive das visitas, a quem pretende impressionar na primeira oportunidade.

“Vejam, este é meu filho, esta é minha esposa, esta é minha sogra e ali é meu carro”, diria um feliz proprietário do imóvel.

Imagine-se comemorar o aniversário da filha e, convenientemente, partir o bolo em cima do capô ainda quente daquela SUV branca ou daquele Renegade verde-oliva bufando de tão lindo, o design de linhas arrojadas disputando o olhar com a debutante de 15 anos, o metálico da pintura e o marrom do couro do banco adornando sutilmente com obras de algum artista que produz em escala industrial para os novos ricos da cidade.

Há outras consequências e facilidades dessa relação afetivo-automotiva compartilhada, no entanto. O carro, embora goze do estatuto de bem vital e desempenhe função quase sagrada na organização da geografia, sempre foi também um meio de evitar os outros e não só um modo de sair de um lugar e chegar ao destino.

Em metrópoles violentas, os veículos assumiram feição de blindados atravessando a selva urbana, cumprindo roteiros estritos que começam em casa, passam pela escola, baldeiam no shopping e eventualmente num restaurante e depois rumam novamente para casa, tudo sem encostar os pés na rua. A rua é o além-muro, a terra dos selvagens, dos bárbaros e dos reis da noite, de onde sempre vem o perigo.

Nesse percurso, o contato com uma exterioridade é quase inexistente porque toda uma tecnologia se desenvolveu para evitar que o ocupante do carro esteja exposto a qualquer risco e à mercê de seus habitantes.

O apartamento-garagem pode até ser cafona como um quadro do Romero Brito ou uma Crocs são, mas é principalmente o símbolo da extrapolação de uma lógica do condomínio na qual a vida se encerra dentro do privado e todas as leis e regras que importam valem unicamente ali. É a tradução arquitetônica para a morte da esfera pública.

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