Pular para o conteúdo principal

O triste adeus a Cid Gomes (OP, 2014)

 É com um banzo indisfarçável que o alencarino vê aproximar-se o fim da era Cid Gomes. Nunca antes na história do Ceará um gestor concluiu oito anos de governança colecionando uma lista interminável de episódios cujo denominador comum é a fanfarronice e a absoluta falta de pudor. Em dois mandatos consecutivos, período no qual o cearense redefiniu os conceitos de estripulia, Cid flertou com o abismo ao dar uma tainha do capô de um jipe e deixou a vergonha de lado ao saltar de tirolesa no Cocó. Sucessor no trono estadual, Camilo Santana terá dificuldades para ombrear os trabalhos do tutor. Terá coragem? Sobrará desenvoltura?

Do incrível voo da sogra, cartão de visitas do governador, ao bufê com bombinhas de camarão no Palácio do Abolição, passando por shows para inaugurar equipamentos públicos, a gestão do engenheiro civil prodigalizou o que há de anedótico na política. Midas circense, o Ferreira Gomes transformou a performance em capital eleitoral e, como numa peça de Zé Celso Martinez Corrêa, termina o ano com um soft power de fazer inveja. Ninguém antes de Cid fez essa perigosa mistura de gestão pública com talk show.

Diferentemente do que os analistas imaginam, no entanto, não foram os bons resultados na educação que levaram Cid ao ministério de Dilma, mas a carreira desabalada que o governador empreendeu em um aeroporto na Bahia. Ali, ao quase provocar um acidente na aviação civil nacional, Cid convenceu a presidente de que era merecedor de um posto na Esplanada dos Ministérios.

A aventura aérea ilustra uma constante: a performance como extensão da política, e a política como gesto cômico. Nesse campo, o sobralense foi imbatível. Seja pilotando um carro com o filho no colo sem usar cinto de segurança, seja mergulhando no tanque de uma adutora ou sorteando ingressos no Facebook para o espetáculo de Beyoncé, o governador demonstrou voluntarismo na resolução dos problemas do Estado.

Como no dia em que, feito um cacique, procurou os ocupantes do Cocó na crise dos viadutos, pediu licença e sentou num tronco de carnaubeira. Em seguida, passou a desenhar na areia um esboço do projeto a ser levado adiante pela Prefeitura de Fortaleza. Os ocupantes acompanhavam tudo entre a surpresa e o riso.

Outra peripécia: durante as eleições de Roberto Cláudio e também na de Camilo, Cid aboletou-se no lombo de uma motoneta amarela pelas ruas da cidade à cata de votos para os pupilos. Quem, depois dele, estará disposto a atividade tão desavergonhada?

Se a opção por Hilux com tração nas quatro rodas e bancos de couro para equipar a PM, ainda no início da gestão, pressagiava um governo com vocação para a extravagância, o projeto do estaleiro no Titanzinho e a construção do aquário na Praia Iracema não deixam dúvidas: Cid Gomes imprimiu uma marca no Ceará. Como as fachadas das novas delegacias, é um símbolo iluminado por LED, a lâmpada favorita por quem pretende modernizar superficialmente estruturas que, na verdade, permanecem as mesmas.

Crônica publicada no jornal O POVO em 28/12/2014

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Trocas e trocas

  Tenho ouvido cada vez mais “troca” como sinônimo de diálogo, ou seja, o ato de ter com um interlocutor qualquer fluxo de conversa, amistosa ou não, casual ou não, proveitosa ou não. No caso de troca, porém, trata-se sempre de uma coisa positiva, ao menos em princípio. Trocar é desde logo entender-se com alguém, compreender seu ponto de vista, colocar-se em seu lugar, mas não apenas. É também estar a par das razões pelas quais alguém faz o que faz, pensa o que pensa e diz o que diz. Didatizando ainda mais, é começar uma amizade. Na nomenclatura mercantil/militar de hoje, em que concluir uma tarefa é “entrega”, malhar é “treinar”, pensar na vida é “reconfigurar o mindset” e praticar é “aprimorar competências”, naturalmente a conversa passa à condição de troca. Mas o que se troca na troca de fato? Que produto ou substância, que valores e capitais se intercambiam quando duas ou mais pessoas se põem nessa condição de portadores de algo que se transmite? Fiquei pensando nisso mais te...

Atacarejo

Gosto de como soa atacarejo, de seu poder de instaurar desde o princípio um universo semântico/sintático próprio apenas a partir da ideia fusional que é aglutinar atacado e varejo, ou seja, macro e micro, universal e local, natureza e cultura e toda essa família de dualismos que atormentam o mundo ocidental desde Platão. Nada disso resiste ao atacarejo e sua capacidade de síntese, sua captura do “zeitgeist” não apenas cearense, mas global, numa amostra viva de que pintar sua aldeia é cantar o mundo – ou seria o contrário? Já não sei, perdido que fico diante do sem número de perspectivas e da enormidade contida na ressonância da palavra, que sempre me atraiu desde que a ouvi pela primeira vez, encantado como pirilampo perto da luz, dardejado por flechas de amor – para Barthes a amorosidade é também uma gramática, com suas regras e termos, suas orações subordinadas ou coordenadas, seus termos integrantes ou acessórios e por aí vai. Mas é quase certo que Barthes não conhecesse atacarejo,...

Projeto de vida

Desejo para 2025 desengajar e desertar, ser desistência, inativo e off, estar mais fora que dentro, mais out que in, mais exo que endo. Desenturmar-se da turma e desgostar-se do gosto, refluir no contrafluxo da rede e encapsular para não ceder ao colapso, ao menos não agora, não amanhã, não tão rápido. Penso com carinho na ideia de ter mais tempo para pensar na atrofia fabular e no déficit de imaginação. No vazio de futuro que a palavra “futuro” transmite sempre que justaposta a outra, a pretexto de ensejar alguma esperança no horizonte imediato. Tempo inclusive para não ter tempo, para não possuir nem reter, não domesticar nem apropriar, para devolver e para cansar, sobretudo para cansar. Tempo para o esgotamento que é esgotar-se sem que todas as alternativas estejam postas nem os caminhos apresentados por inteiro. Tempo para recusar toda vez que ouvir “empreender” como sinônimo de estilo de vida, e estilo de vida como sinônimo de qualquer coisa que se pareça com o modo particular c...