Pular para o conteúdo principal

A estética da demolição

 

Por outro lado, Fortaleza poderia assumir de vez a demolição de arquitetura e a falta de preservação como um ativo turístico, uma marca da metrópole em meio à homogeneização da paisagem, um diferencial que a tornaria mais competitiva no mercado global dos fluxos de viagens no mundo pós-pandêmico.

Assim, quando o turista do Maranhão ou do Espírito Santo ou da França chegassem à capital cearense, o guia local se encarregaria de exibir não o que temos de riqueza preservada, mas o que havia ali e agora não há mais: o vazio, o terreno baldio, o deserto planejado e executado calculadamente por autoridades e construtoras.

Exemplo: aqui ficava a casa da escritora Rachel de Queiroz até o ano tal, quando foi saqueada e ruiu após muito tempo de descaso, um processo cuidadoso de abandono no qual foi empregada muita energia para negligenciar reparos e demais expedientes que um imóvel com essas características requeria.

Não é um vazio bonito? Afinal, o esquecimento é obra deliberada que requer muito empenho.

O mesmo com a residência de José de Alencar, demolida por interesse capital e no lugar da qual se planta agora um lindo cercado de tapumes em cores alternadas que criam a sensação de repetição, quase numa provocação ao que foi arrancado dali, não acham?

Reparem também neste terreno onde se erguia o farol do Mucuripe. Hoje é uma lacuna estética e contemplativa que convida a pensar sobre como teria feito bem à coletividade um gesto de zelo pela memória e história de nossa gente se ainda o mantivéssemos de pé, concordam?

E o que dizer sobre o Estoril, largado à própria sorte, convertido em barzinho e depois deixado de lado para, finalmente, se metamorfosear em entulho, utilizado quem sabe para a construção de um espigão metros adiante? Não é um aproveitamento e tanto da história, o velho carreado como lixo para fundar o novo e exuberante conjunto da nova arquitetura fortalezense?

Impossível, por certo, não falar da extinta Ponte Metálica, estirão de ferro e madeira havia quase cinco anos esquecido em reformas sem fim, que jamais começavam e portanto jamais se concluíam, arrastada enfim por uma ressaca tão forte que não deixou pedra sobre pedra. Uma pena que não possamos caminhar sobre as tábuas da ponte, mas um aplicativo lançado pelo governo mês passado simula como seria se ainda fosse.

Vejam ainda o que antes era a farmácia Oswaldo Cruz, imóvel antigo e marco do processo de urbanização de Fortaleza, uma joia do Centro. Em seu lugar hoje espicha-se uma moderna Pague Menos, que preserva não somente as mesmas linhas arquitetônicas da farmácia de outrora, mas também a balança.

Isso mesmo, quando se pesarem nessa nova unidade (a milésima segunda da cidade), lembrem-se de que estão sentindo o peso da história sobre seus ombros.

Por fim, não se pode deixar de falar do riacho Pajeú, fiapo d’água a que se quis preservar a muito custo e dinheiro, mas que hoje é uma praça totalmente cimentada e adornada com mudas exóticas transplantadas diretamente do horto e cujo prazo de vida varia entre dois meses e a um ano. No logradouro, reza a lenda de que, se fizermos bastante silêncio, ainda é possível ouvir o ronco do riacho semimorto correndo a metros e metros abaixo do piso intertravado.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Trocas e trocas

  Tenho ouvido cada vez mais “troca” como sinônimo de diálogo, ou seja, o ato de ter com um interlocutor qualquer fluxo de conversa, amistosa ou não, casual ou não, proveitosa ou não. No caso de troca, porém, trata-se sempre de uma coisa positiva, ao menos em princípio. Trocar é desde logo entender-se com alguém, compreender seu ponto de vista, colocar-se em seu lugar, mas não apenas. É também estar a par das razões pelas quais alguém faz o que faz, pensa o que pensa e diz o que diz. Didatizando ainda mais, é começar uma amizade. Na nomenclatura mercantil/militar de hoje, em que concluir uma tarefa é “entrega”, malhar é “treinar”, pensar na vida é “reconfigurar o mindset” e praticar é “aprimorar competências”, naturalmente a conversa passa à condição de troca. Mas o que se troca na troca de fato? Que produto ou substância, que valores e capitais se intercambiam quando duas ou mais pessoas se põem nessa condição de portadores de algo que se transmite? Fiquei pensando nisso mais te...

Atacarejo

Gosto de como soa atacarejo, de seu poder de instaurar desde o princípio um universo semântico/sintático próprio apenas a partir da ideia fusional que é aglutinar atacado e varejo, ou seja, macro e micro, universal e local, natureza e cultura e toda essa família de dualismos que atormentam o mundo ocidental desde Platão. Nada disso resiste ao atacarejo e sua capacidade de síntese, sua captura do “zeitgeist” não apenas cearense, mas global, numa amostra viva de que pintar sua aldeia é cantar o mundo – ou seria o contrário? Já não sei, perdido que fico diante do sem número de perspectivas e da enormidade contida na ressonância da palavra, que sempre me atraiu desde que a ouvi pela primeira vez, encantado como pirilampo perto da luz, dardejado por flechas de amor – para Barthes a amorosidade é também uma gramática, com suas regras e termos, suas orações subordinadas ou coordenadas, seus termos integrantes ou acessórios e por aí vai. Mas é quase certo que Barthes não conhecesse atacarejo,...

Projeto de vida

Desejo para 2025 desengajar e desertar, ser desistência, inativo e off, estar mais fora que dentro, mais out que in, mais exo que endo. Desenturmar-se da turma e desgostar-se do gosto, refluir no contrafluxo da rede e encapsular para não ceder ao colapso, ao menos não agora, não amanhã, não tão rápido. Penso com carinho na ideia de ter mais tempo para pensar na atrofia fabular e no déficit de imaginação. No vazio de futuro que a palavra “futuro” transmite sempre que justaposta a outra, a pretexto de ensejar alguma esperança no horizonte imediato. Tempo inclusive para não ter tempo, para não possuir nem reter, não domesticar nem apropriar, para devolver e para cansar, sobretudo para cansar. Tempo para o esgotamento que é esgotar-se sem que todas as alternativas estejam postas nem os caminhos apresentados por inteiro. Tempo para recusar toda vez que ouvir “empreender” como sinônimo de estilo de vida, e estilo de vida como sinônimo de qualquer coisa que se pareça com o modo particular c...