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História da casa

 Sete meses na casa. Habituei-me a seu ritmo, pensei que fosse mudar, mas mudei eu. Respiro como a casa, levanto e deito a seu modo. Se lhe acontece de adoecer, adoeço também, como no fim de semana em que o liquidificador danificou-se e uma lâmpada queimou, e logo eu caí acometido de sabe-se lá que enfermidade. Tinha febre e vomitava, mas agora estou melhor, a casa está melhor. 

Às vezes de madrugada passo pelo corredor e olho para o quarto escuro onde escrevo rodeado de objetos empilhados e me vejo sentado. Eu não levantei, continuo lá, batucando no teclado, parte de mim não se descola da cadeira, parte de mim aderiu à casa e não se move desse espaço doméstico.

Respiro a casa, os pulmões se dilatam sincronizados com as cortinas. Se elas esvoaçam, eu expiro, se se encolhem, eu inspiro, e assim meu corpo comunica ao corpo da casa a sua presença. Mais que isso, a sua aderência. Os rangidos da casa coincidem com os sons que produzo dormindo.

A casa é grande para os padrões de outras casas pelas quais passei. Quatro quartos, três banheiros, cozinha, varanda, uma sala ampla. Logo quando chegamos decidi que ocuparia o cômodo do meio, entre o quarto da filha e o nosso. Passaria as tardes ali escrevendo enquanto o sol me fazia suar, porque estávamos nesse período em que incide diretamente contra nossa parede.

Temos um corredor ao fim do qual há um banheiro e no banheiro um grande espelho retangular, de modo que posso olhar de longe para o espectro, a mais ou menos dez metros de mim. Acena se eu aceno, ri se eu rio, encurva se eu encurvo. Sou eu, sendo outro. É outro, sendo eu.

A casa opera como um corpo vivo, responde a sei lá que energias que emanamos. Se alegres, alegra-se, mas o contrário também é verdade. Lembro de uma noite em que metade dos eletros pifaram. Pararam de funcionar. Simplesmente se recusaram. Trocamos tudo no dia seguinte, a filha ajudando a desempacotar e fazendo das caixas outras casas.

Ao entrar pela primeira vez, senti como se morasse na casa havia tempos e só agora, depois de viajar ou sumir ou voltar de onde tinha estado, retornava ao seu interior. Mas a casa machuca, a casa é vingativa, talvez cruel. Ameaça se a ameaçamos.

A casa é superpovoava de pequenos objetos, coisas visíveis e não visíveis, peças de jogos e de roupas esquecidas em toda parte, pó acumulado em regiões que não costumamos faxinar, enfim, um ecossistema particular formado pela junção de tudo que carregamos por querer ou não querer.

Nesses meses, passei a conhecer melhor a casa, seu humor, textura, os ruídos que faz alta madrugada, os gostos, mesmo as zonas inespecíficas nas quais sinto que não podemos estar, os interditos. Mas há interditos?

A casa não responde, sinal de que pode haver, embora acredite que seja sempre transparente, manifestando quase automaticamente sua desaprovação se se desgosta de algo ou, ao contrário, euforia se consente.

Confundo-me na casa, exaspero-me também, finjo esquecê-la quando extenuado, peço que ignore os pares de calçados largados por todo lado, as roupas estendidas no varal na sala para que sequem ao vento que entra farto pela janela, a instalação elétrica precária, a mesa mal posta, a luz estridente, a falta de um desodorífico que atenue os cheiros dos corpos confinados, um sanitário sujo, o banheiro sem lavar por mais de três dias, a pia entupida e o cocô do gato no quarto que costumamos chamar de quartinho e não de quarto de empregada.

No fim de semana trouxemos areia da praia nos bolsos e a despejamos no chão da casa, que presumo apreciar o travo salgado do contato, a areia fina depois varrida para um canto do taco escuro e lá permanecendo, agora também parte da casa, como uma pele sobreposta.

Comecei a inventariar objetos, tubos de xampu, restos de sabonete, panelas, frutas cortadas nos recipientes, mesas, toalhas, xícaras de café, pratos recolhidos no armário, uma extensa coleção de palavras que fui anotando cuidadosamente a fim de que a casa conhecesse a casa.

Porque sinto que às vezes a casa estranha a própria casa, não se reconhece nela, pede que se apresente e diga seu nome, e então eu tenho de intervir e fazer recordar a todos que a casa tem uma história, a casa foi construída com um propósito, a casa chama-se casa porque antes de nós alguém a chamou casa e antes ainda outra pessoa instaurou o lugar da casa.

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