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Dunas móveis

Ri ao imaginar a equipe encarregada de tanger a duna de volta pro morro, algo como afastar a água do mar com um rodo ou impedir a passagem do vento com uma sacola. Um empreendimento de Sísifo, e, no entanto, é o que temos visto.

Imagine-se o superior ordenando ao auxiliar: encaminhe-se agora mesmo à rodovia tal e varra de lá a areia da praia, de modo a liberar novamente a via construída à margem de uma duna, atravessando um parque, ocupando lugar que não devia, portanto totalmente inadequada.

Quis ver poesia no fato de que a duna reocupasse o lugar que é seu, a natureza sempre retomando o controle, impondo-se ao construto e toda essa besteirada que escrevemos para compensar a impotência e disfarçar o fato de que, no frigir dos ovos, perdemos muito e sempre.

Há, evidentemente, o ridículo da situação: interpelar a justiça e dela esperar autorização para, daí sim, passar o pano na rua recoberta de areia porque, afinal, é o que faz a areia: espalha-se.

É como opera também uma duna móvel: movimenta-se. Se hoje está aqui, amanhã não está mais e semana que vem pode ser vista numa esquina acenando para um Uber ou descendo a Desembargador Moreira de canga a caminho da praia.

A duna é migrante, logo não se contém, é organismo sem borda, inteiro atravessado.

E calharam de traçar a pista ao lado desse corpo informe, algo como construir sobre terreno cediço, concordam? E agora reclamam da areia que retorna.

Torço pra que façam uma live dos homens mourejando para empurrar os grãos enquanto eles voltam, um desfazendo o trabalho do outro, como naquele meme de dois personagens de desenho animado.

E passaríamos a tarde pensando e talvez até vendo graça na pouca serventia que tem uma empreitada dessa natureza.

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