Pular para o conteúdo principal

Chá de revelação

 

O Brasil se tornou um grande chá de revelação mal-sucedido em que os pais incendeiam o Pantanal se for menino ou despejam óleo cru nas praias se for menina. Para menino, reforma administrativa; para menina, cédula de 200 reais.

Menino, desmonte da legislação ambiental; menina, Mário Frias encenando série criada por ele mesmo com transmissão compulsória na TV aberta. Menino, cloroquina administrada na rede de postos de saúde; menina, aglomeração sem máscara. Menino, volta às aulas sem teste; menina, barracas lotadas no fim de semana.

A distopia política nacional ganhou ares de drama familiar. E nada mais apropriado do que a celebração na qual os progenitores chutam para escanteio qualquer limite quando se trata de anunciar o sexo do bebê, esse evento agora mais importante do que a concepção em si.

Fazer a criança, vê-la nascer e depois crescer, avançar nos estudos, tornar-se gente e depois quem sabe até lhe dar um ou outro neto, caso lhe passe pela cabeça contribuir pela continuação da espécie. Tudo isso é detalhe. O clímax da vida contemporânea, o seu ponto G, como qualquer aspecto desta era digital, é a performance. E isso está ligado diretamente ao conceito de revelação.

Revelar é o que interessa – expor a outrem o sexo, como se, ao conhecê-lo, uma parte fundamental da caminhada desse indivíduo estivesse determinada. Se é um varão e não uma “fraquejada”, terá mais facilidades, a certeza do gozo acessível e de uma série de direitos atrelados, como o de importunar sem ser importunado.

Se, por outro lado, é uma menina, tadinha, sobretudo se vier ao mundo até 2022, época em que mesmo uma garotinha de dez anos pode ganhar a alcunha de “assassina” na boca de um cidadão de bem.

Daí que o tal chá tenha se tornado a metáfora perfeita do país nestes tempos de peste. Com Bolsonaro de pai e Michelle de mãe, ou Queiroz e esposa de pai e mãe, ou Flávio e sua cônjuge, ou Moro e a digníssima, revelar nunca é tão somente trazer à baila algo escondido.

É explosivo, catatônico, um mergulho no abismo, uma aposta na terra arrasada. De repente, Damares Alves salta na frente do palco com uma meia azul e, numa sala fechada cercada de painéis, Ricardo Salles aciona um comando que dispara queimadas na Amazônia.

Sentado numa poltrona de feltro lilás roubada a um cenário de cabaré de pornochanchada, Frias estende uma fita de papel rosa e, “voilà”, centenas de milhares de rolos de filme e fotos da cinemateca entram em combustão espontânea, fazendo desaparecer a história nacional no cinema.

É uma desgraça – no sentido estrito da palavra, o contrário da graça, comumente vinculada à magia do nascimento, da geração da vida, esse ato de potência, aquele instante em que se dá a conhecer um semelhante.

Mas não aqui, não agora, não neste ano. O chá de revelação como paródia do momento revela a impotência, a “incriação”, o dessemelhante, a morte, como o cogumelo químico que se seguiu ao lançamento da bomba devastadora, tudo acompanhado das palmas entusiasmadas da família tradicional brasileira.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Trocas e trocas

  Tenho ouvido cada vez mais “troca” como sinônimo de diálogo, ou seja, o ato de ter com um interlocutor qualquer fluxo de conversa, amistosa ou não, casual ou não, proveitosa ou não. No caso de troca, porém, trata-se sempre de uma coisa positiva, ao menos em princípio. Trocar é desde logo entender-se com alguém, compreender seu ponto de vista, colocar-se em seu lugar, mas não apenas. É também estar a par das razões pelas quais alguém faz o que faz, pensa o que pensa e diz o que diz. Didatizando ainda mais, é começar uma amizade. Na nomenclatura mercantil/militar de hoje, em que concluir uma tarefa é “entrega”, malhar é “treinar”, pensar na vida é “reconfigurar o mindset” e praticar é “aprimorar competências”, naturalmente a conversa passa à condição de troca. Mas o que se troca na troca de fato? Que produto ou substância, que valores e capitais se intercambiam quando duas ou mais pessoas se põem nessa condição de portadores de algo que se transmite? Fiquei pensando nisso mais te...

Atacarejo

Gosto de como soa atacarejo, de seu poder de instaurar desde o princípio um universo semântico/sintático próprio apenas a partir da ideia fusional que é aglutinar atacado e varejo, ou seja, macro e micro, universal e local, natureza e cultura e toda essa família de dualismos que atormentam o mundo ocidental desde Platão. Nada disso resiste ao atacarejo e sua capacidade de síntese, sua captura do “zeitgeist” não apenas cearense, mas global, numa amostra viva de que pintar sua aldeia é cantar o mundo – ou seria o contrário? Já não sei, perdido que fico diante do sem número de perspectivas e da enormidade contida na ressonância da palavra, que sempre me atraiu desde que a ouvi pela primeira vez, encantado como pirilampo perto da luz, dardejado por flechas de amor – para Barthes a amorosidade é também uma gramática, com suas regras e termos, suas orações subordinadas ou coordenadas, seus termos integrantes ou acessórios e por aí vai. Mas é quase certo que Barthes não conhecesse atacarejo,...

Projeto de vida

Desejo para 2025 desengajar e desertar, ser desistência, inativo e off, estar mais fora que dentro, mais out que in, mais exo que endo. Desenturmar-se da turma e desgostar-se do gosto, refluir no contrafluxo da rede e encapsular para não ceder ao colapso, ao menos não agora, não amanhã, não tão rápido. Penso com carinho na ideia de ter mais tempo para pensar na atrofia fabular e no déficit de imaginação. No vazio de futuro que a palavra “futuro” transmite sempre que justaposta a outra, a pretexto de ensejar alguma esperança no horizonte imediato. Tempo inclusive para não ter tempo, para não possuir nem reter, não domesticar nem apropriar, para devolver e para cansar, sobretudo para cansar. Tempo para o esgotamento que é esgotar-se sem que todas as alternativas estejam postas nem os caminhos apresentados por inteiro. Tempo para recusar toda vez que ouvir “empreender” como sinônimo de estilo de vida, e estilo de vida como sinônimo de qualquer coisa que se pareça com o modo particular c...