Pular para o conteúdo principal

Um balanço


Pensei num balanço da quarentena, coisas que aprendi (nada) e também coisas que imaginei que aprenderia no curso desses pouco mais de 100 dias de confinamento, quando supus, ainda em março, que tudo não levaria dois meses e logo estaríamos de volta. Duplo engano. Tanto a exclusão consumiria bem mais tempo, quanto o processo em si de estar em casa por longas horas não seria como um mergulho em si mesmo, uma volta às origens ou mesmo uma oportunidade para aprender jardinagem ou francês.

E, no entanto, julgo que, a despeito de tudo, houve mesmo uma reconexão com algo cuja natureza não sei qual é, mas do qual me sinto próximo, como um primo que esbarra num familiar muitos anos depois de um único contato na infância e o reconhece pelas características físicas comuns – uma sobrancelha arqueada, a calva, os braços longos ou uma maneira especial de fingir-se estranho.

De maneira que, embora saiba que nesse dias e semanas que se passaram eu tive momentos de uma franca conversa com essa matéria desconhecida mas íntima, tenho dificuldade de afirmar com segurança que deixo esse estágio como um ser humano transformado, na acepção “coachiana” da palavra, que parece ser a única que interessa hoje quando falamos de pandemia e confinamento: que saímos desta melhores do que entramos.

Antes de qualquer coisa, as pessoas desejam se sentir vitoriosas porque atravessaram esse tempo em casa cuidando de tudo, e agora, como maratonistas que chegaram à linha final, esperam receber um prêmio.

Mas descobrem frustrados que não há prêmio. Nem linha. Na realidade, não há corrida, e tudo não passou de uma construção coletiva idiota que nos ajudou em algum momento a encarar essa volta à caverna para, ao cabo, reatarmos os laços com o cotidiano sem a certeza de que o atrito nessa reentrada não vai nos transformar em um bólido luminoso em queda livre.

No começo, porém, tudo era potencial, tudo como um primeiro dia de escola, a euforia do novo combinada à expectativa de que grandes atividades se cumpririam naquele espaço e naquele tempo – o espaço da casa, o tempo do confinamento. Animado, lembro de ter separado livros por autor e finalidade. Os livros para ler antes de escrever, numa espécie de aquecimento, os livros para ler por longas horas, num exercício mental mais exigente, e os livros que eu leria se houvesse tempo e saco. Ao final, restaram quase todos intocados, enquanto eu tentava entender por que as minhas atenções não estavam inteiramente voltadas para a produção de algo que fosse ao mesmo tempo meu mas também alheio, uma peça que refletisse esse contexto, derivando de movimentos tectônicos pessoais e coletivos e decantando todas as minhas preocupações aqui e agora, que basicamente se resumiam a:

Eu não sabia.

Disperso e cansado, mal assentado numa cadeira que rangia ao meu peso, escrevendo sobretudo nas horas de intervalo entre a jornada laboral da qual me valho para pagar as contas e as horas em que sou constantemente demandado pela filha para brincar, estudar, comer e acompanhar as peripécias dos desenhos animados, de tempos em tempos acariciava o gato que aprendeu a dormir a meus pés, como se, com isso, me emprestasse coragem para seguir em frente, fosse com o que fosse, e não desistisse sem ao menos tentar sentir esse gostinho de fracassar.

Antes de continuar, peço licença para parar aqui e repensar por um dia ou dois o andamento desta quase crônica, que, me parece, acabou tomando um caminho estranho ao que havia imaginado no começo, não um caminho ameaçador ou incômodo, mas apenas em desacordo com as ideias que havia esboçado num caderno, quais sejam, eu seguiria por umas páginas falando sobre como me tornara exatamente quem sou durante esses 100 dias de reclusão, inclusive revisitando lugares nos quais eu fui adolescente e lá entendendo que tudo se arruína à medida que o tempo passa.

E, mesmo assim, era uma compreensão sorridente, otimista, nela não tinha um nervo de nostalgia nem nada, era uma constatação feliz a de que as coisas se estragam, tanto os lugares quanto as pessoas, e, apesar disso, vejam como conseguimos chegar até aqui, extraindo até mesmo alguma graça no fato de que é possível morrer e viver um bocado de cada vez, morrer e viver em ritmo de valsa.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Trocas e trocas

  Tenho ouvido cada vez mais “troca” como sinônimo de diálogo, ou seja, o ato de ter com um interlocutor qualquer fluxo de conversa, amistosa ou não, casual ou não, proveitosa ou não. No caso de troca, porém, trata-se sempre de uma coisa positiva, ao menos em princípio. Trocar é desde logo entender-se com alguém, compreender seu ponto de vista, colocar-se em seu lugar, mas não apenas. É também estar a par das razões pelas quais alguém faz o que faz, pensa o que pensa e diz o que diz. Didatizando ainda mais, é começar uma amizade. Na nomenclatura mercantil/militar de hoje, em que concluir uma tarefa é “entrega”, malhar é “treinar”, pensar na vida é “reconfigurar o mindset” e praticar é “aprimorar competências”, naturalmente a conversa passa à condição de troca. Mas o que se troca na troca de fato? Que produto ou substância, que valores e capitais se intercambiam quando duas ou mais pessoas se põem nessa condição de portadores de algo que se transmite? Fiquei pensando nisso mais te...

Atacarejo

Gosto de como soa atacarejo, de seu poder de instaurar desde o princípio um universo semântico/sintático próprio apenas a partir da ideia fusional que é aglutinar atacado e varejo, ou seja, macro e micro, universal e local, natureza e cultura e toda essa família de dualismos que atormentam o mundo ocidental desde Platão. Nada disso resiste ao atacarejo e sua capacidade de síntese, sua captura do “zeitgeist” não apenas cearense, mas global, numa amostra viva de que pintar sua aldeia é cantar o mundo – ou seria o contrário? Já não sei, perdido que fico diante do sem número de perspectivas e da enormidade contida na ressonância da palavra, que sempre me atraiu desde que a ouvi pela primeira vez, encantado como pirilampo perto da luz, dardejado por flechas de amor – para Barthes a amorosidade é também uma gramática, com suas regras e termos, suas orações subordinadas ou coordenadas, seus termos integrantes ou acessórios e por aí vai. Mas é quase certo que Barthes não conhecesse atacarejo,...

Projeto de vida

Desejo para 2025 desengajar e desertar, ser desistência, inativo e off, estar mais fora que dentro, mais out que in, mais exo que endo. Desenturmar-se da turma e desgostar-se do gosto, refluir no contrafluxo da rede e encapsular para não ceder ao colapso, ao menos não agora, não amanhã, não tão rápido. Penso com carinho na ideia de ter mais tempo para pensar na atrofia fabular e no déficit de imaginação. No vazio de futuro que a palavra “futuro” transmite sempre que justaposta a outra, a pretexto de ensejar alguma esperança no horizonte imediato. Tempo inclusive para não ter tempo, para não possuir nem reter, não domesticar nem apropriar, para devolver e para cansar, sobretudo para cansar. Tempo para o esgotamento que é esgotar-se sem que todas as alternativas estejam postas nem os caminhos apresentados por inteiro. Tempo para recusar toda vez que ouvir “empreender” como sinônimo de estilo de vida, e estilo de vida como sinônimo de qualquer coisa que se pareça com o modo particular c...