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Escrita não criativa

Criei (que contrassenso) um curso de escrita não-criativa para alunos de primeira viagem ou já experientes que desejem, assim como eu, expressar-se da maneira menos criativa possível, apelando a frases feitas e imagens já gastas, tais como o “céu parecia de chumbo” e a “chuva caía generosa sobre a calha”.

Dividido em módulos, o curso será realizado em parceria com o Sesc-Senac, com aulas práticas ministradas em filiais de farmácias da cidade, além de outros pontos da capital cearense que remetam a essa ideia de falta de criatividade.

Por exemplo, a avenida Senador Fernandes Távora é um lócus privilegiado nesse aspecto. Cada fachada de loja, cada pequeno toldo de ótica ou armarinho, cada esquina de lanchonete é uma homenagem à total e irreversível incapacidade de fazer qualquer coisa minimamente criativa, extraindo disso sua fortaleza. É o copiar + colar aplicado em grande escala, uma estética difundida sem precedentes e posta a serviço de uma cadeia de pequenos negócios gastro-odonto-óticos.

Os facilitadores, além de mim, hão de ser recrutados aleatoriamente, de preferência entre pessoas cuja obra não tenha ultrapassado uma carta ou bilhete desses que pomos na geladeira, de maneira a priorizar aqueles escritores ainda virginais, gente que realmente pode ter o que falar ainda que não saiba o quê e nem como.

O primeiro módulo, por óbvio, consiste em livrar-se desde a entrada do curso da ideia tóxica de que a criatividade é uma coisa boa ou algo que deva ser replicado, como um ativo publicitário ou armação do óculos da moda, salvo quando a cópia for descarada. Por exemplo: vale reescrever todo o Kafka ou todo o Borges, mas não pretender escrever à Kafka ou à Borges. O objetivo é entender o processo que transformou os adjetivos “criativa” ou “criativo” numa espécie de miçanga dos letrados daqui e d’alhures.        

Feito isso, passamos ao segundo ponto, que é a aplicação prática da falta de criatividade, colocando em cena personagens que se recusem a assumir uma faceta original ou criativa diante do mundo, agindo por meio de chavões e respondendo a estímulos sempre com a mesma frase: “preferiria não o fazer”. Esse negacionismo constitui a chave-mestra de nosso curso de escrita não-criativa.  

Só então partimos para situar essas pessoas sem almas em habitats igualmente anódinos, ou seja, destituídos de qualquer traço que os possa distinguir ou particularizar. Nossas histórias não-criativas, portanto, devem priorizar lugares como shoppings, estacionamentos de McDonald’s, filas de banco, setor de frios de supermercados, quartos de hotel e salas de espera de consultórios. 

Cumprido todo esse roteiro extenuante e árido durante o qual nenhuma ideia genuína irá florescer, cada aluno receberá em casa, pelo Instituto Universal, um diploma do “Curso de Desescrita”. De posse desse documento mambembe, estará autorizado a desescrever em qualquer plataforma, ou a escrever não-criativamente, ou a escrever apenas munido de lugares-comuns, ou ainda a copiar trechos inteiros de obras de outros autores e depois assinar como se dele fosse, fazendo do autêntico o inautêntico e vice-versa.

As inscrições são gratuitas. 

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