Pular para o conteúdo principal

Democracia em vertigem e a vertigem da crítica



Oi, (nome da pessoa). Tudo bem? 

Primeiro, grato pela leitura dos artigos. Sobre o filme da Petra e sua fala a respeito de minha resenha, tenho algumas considerações. De partida, você diz: “Petra é acusada de falar para um 'círculo de convertidos”. Eu não acuso Petra de nada. 

Eu apresento divergências quanto a forma e conteúdo, e, até onde sei, divergir ainda não é crime. Resumo minha crítica num ponto: “Como documentário, ‘Democracia em vertigem’ é pouco nuançado e tendendo a um esforço explícito de busca de cumplicidade de quem o veja”. Pouco nuançado porque passa ao largo do efetivo papel que cada personagem desempenhou no processo de desgaste e queda de Dilma, inclusive o próprio PT, que sai muito bem na fita, já que suas manobras para sabotar a agenda dilmista na Câmara não são pontos sequer de nota de rodapé. 

E “tendendo a uma cumplicidade” da audiência porque fala a quem já se convenceu de que o afastamento da presidente foi resultado de uma arquitetura política forjada por um rol de vilões estranhos ao Planalto naquele momento, e isso fica claro no filme quando Petra, na sua voz em off, narra que “a fauna do poder” (não lembro com precisão as palavras) muda de uma hora para outra. 

Nada é mais enganoso, já que essa mesma fauna era habitué do Palácio desde FHC e continuou principalmente com Lula, o padrinho do casamento entre Dilma e Temer, tratado no documentário como um “namoro arranjado”. Então, qual o papel do próprio Lula nessa crise, que não começou em 2015 mas no momento mesmo em que atou PT e MDB? O filme não discute. Assim como não discute o mensalão e a Petrobras. São episódios que não interessam à diretora. 

Esses são alguns aspectos mais políticos, mas há outros a considerar. Há quem veja coragem de Petra Costa em aderir integralmente a um ponto de vista ideológico que ignora as zonas cinzentas que existem à direita e também à esquerda. Coragem, creio eu, seria tratar essa crise com mais abertura intelectual e sem recorrer a uma cartilha de novela, com mocinhos e vilões facilmente identificáveis numa trama cujo final todos conhecemos. 

Para mim, o documentário falha como obra de arte porque é chapado – os maus são maus, os bons são bons, e uma parte da audiência se contenta porque o filme mostra exatamente o que gostaria de ver na tela, reforçando a convicção de que estão do lado certo da história. Nesse sentido, o documentário promove uma catarse às avessas. 

Que obra eu gostaria de ter visto? Uma que fosse menos fechada numa perspectiva política e que pudesse abarcar outras facetas (como escrevi na resenha) das personagens diretamente envolvidas na história, porque elas existem e estão por aí, prontas para enriquecer uma reflexão sobre o processo de impeachment e a eleição de Bolsonaro. 

Para isso, acho que a diretora deveria se afastar mais dos eventos para olhá-los com outro viés (é possível? Eu acho que sim), mas o que há em Democracia em vertigem é um aprofundamento do viés. Quando falo de convertidos, portanto, estou falando daqueles que se satisfazem com o que é mostrado no documentário e encaram essa narrativa como a Verdade, com V maiúsculo, tratando qualquer divergência como acusação. 

Sobre o Moro, basta qualquer pesquisa simples no Google para entender o que penso sobre o assunto e o personagem. Mas cito um trecho desse mesmo artigo mencionado por você, escrito em novembro do ano passado. 

Segue: “À suspeita de que uma fração de suas decisões como juiz tinha motivação política, Moro oferece agora elementos concretos. O que o flerte com Bolsonaro sugere é que talvez a atividade política sempre tenha existido como um dos combustíveis do magistrado no curso dos trabalhos. Por muito tempo, o PT e outros partidos se esforçaram para desqualificar os atos de Sergio Moro. Talvez não esperassem que o próprio juiz produzisse contra si mesmo o indício mais contundente de que, ao analisar processos, tem um olho na lei e outro na política”.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Trocas e trocas

  Tenho ouvido cada vez mais “troca” como sinônimo de diálogo, ou seja, o ato de ter com um interlocutor qualquer fluxo de conversa, amistosa ou não, casual ou não, proveitosa ou não. No caso de troca, porém, trata-se sempre de uma coisa positiva, ao menos em princípio. Trocar é desde logo entender-se com alguém, compreender seu ponto de vista, colocar-se em seu lugar, mas não apenas. É também estar a par das razões pelas quais alguém faz o que faz, pensa o que pensa e diz o que diz. Didatizando ainda mais, é começar uma amizade. Na nomenclatura mercantil/militar de hoje, em que concluir uma tarefa é “entrega”, malhar é “treinar”, pensar na vida é “reconfigurar o mindset” e praticar é “aprimorar competências”, naturalmente a conversa passa à condição de troca. Mas o que se troca na troca de fato? Que produto ou substância, que valores e capitais se intercambiam quando duas ou mais pessoas se põem nessa condição de portadores de algo que se transmite? Fiquei pensando nisso mais te...

Atacarejo

Gosto de como soa atacarejo, de seu poder de instaurar desde o princípio um universo semântico/sintático próprio apenas a partir da ideia fusional que é aglutinar atacado e varejo, ou seja, macro e micro, universal e local, natureza e cultura e toda essa família de dualismos que atormentam o mundo ocidental desde Platão. Nada disso resiste ao atacarejo e sua capacidade de síntese, sua captura do “zeitgeist” não apenas cearense, mas global, numa amostra viva de que pintar sua aldeia é cantar o mundo – ou seria o contrário? Já não sei, perdido que fico diante do sem número de perspectivas e da enormidade contida na ressonância da palavra, que sempre me atraiu desde que a ouvi pela primeira vez, encantado como pirilampo perto da luz, dardejado por flechas de amor – para Barthes a amorosidade é também uma gramática, com suas regras e termos, suas orações subordinadas ou coordenadas, seus termos integrantes ou acessórios e por aí vai. Mas é quase certo que Barthes não conhecesse atacarejo,...

Projeto de vida

Desejo para 2025 desengajar e desertar, ser desistência, inativo e off, estar mais fora que dentro, mais out que in, mais exo que endo. Desenturmar-se da turma e desgostar-se do gosto, refluir no contrafluxo da rede e encapsular para não ceder ao colapso, ao menos não agora, não amanhã, não tão rápido. Penso com carinho na ideia de ter mais tempo para pensar na atrofia fabular e no déficit de imaginação. No vazio de futuro que a palavra “futuro” transmite sempre que justaposta a outra, a pretexto de ensejar alguma esperança no horizonte imediato. Tempo inclusive para não ter tempo, para não possuir nem reter, não domesticar nem apropriar, para devolver e para cansar, sobretudo para cansar. Tempo para o esgotamento que é esgotar-se sem que todas as alternativas estejam postas nem os caminhos apresentados por inteiro. Tempo para recusar toda vez que ouvir “empreender” como sinônimo de estilo de vida, e estilo de vida como sinônimo de qualquer coisa que se pareça com o modo particular c...