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Primeiro escrever, depois ler


Sim, as caixas. Apenas ontem terminei de desembalar o último pacote de livros e comecei a organizar as coisas na estante depois de uma temporada com a vida bagunçada e essas páginas todas espalhadas pelo chão de casa.

É a primeira vez que falo sobre isso. 

Talvez não devesse dar tanta importância ao movimento pendular de corpos e ao rearranjo que os sentimentos acabam provocando, mas o fato é que estou aqui disposto a abordar um assunto cuja complexidade de repente me pareceu possível de ser vencida de algum modo ainda impreciso.

E então passei a desembrulhar tudo e a retirar cada pequeno objeto contido nas caixas, como se apenas agora me devolvessem algo precioso sem o qual eu não poderia voltar a andar sem tropeçar.

Caixas guardadas por quase todo o ano, lacradas com fita isolante e esquecidas num canto da sala.

Caixas grandes e pequenas, quase todas estampando alguma marca de xampu ou de laticínio, mas que não guardavam nem produtos de beleza nem iogurtes.

Caixas com livros, muitos dos quais nunca lidos, parte deles sem a menor importância.

O espólio de uma guerra, exatamente como as tralhas que os fugitivos deixam pra trás quando os bárbaros estão às portas da cidadela e todas as defesas já ruíram e não resta nada senão tentar escapar por dentro da floresta numa corrida desesperada.

É sobre essas caixas que estou falando aqui, não quaisquer caixas, mas apenas essas que hesitei em abrir, caixas que permaneciam fechadas durante todo esse tempo, caixas que queimavam se eu as tocasse com as mãos nuas, caixas como ossadas encontradas por uma missão arqueológica que depara com outra vida assentada sob camadas e mais camadas de solo.

Caixas que foram e voltaram.

Uma história sobre essas caixas seria necessariamente uma história sobre a minha vida posta em caixas que vão e voltam, num movimento cíclico cuja proporção eu precisaria calcular com alguma fórmula matemática básica.

Caixas, apenas.

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