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Praia/sertão


Em pesquisa rápida para a crônica semanal que escrevo no jornal O POVO, chego a uma página que explica em pormenores o cheiro do mar.

Falava de vento, essa força que arrebata, e queria entender por que o mar tem o cheiro que tem, um odor característico que é como a junção de muitos odores. Procurava uma palavra que traduzisse então o predomínio do salgado.

Fui bater em corrosão. Da crônica original excluí um parágrafo inteiro que reproduzo agora:

“Aqui o vento ergue-se desde o mais perto dos pés, arrancando da terra a quentura, e depois levanta-se num ímpeto, percorrendo o corpo e nesse trajeto deixando as marcas”.

Agosto e setembro são os meses de ventania que atraem ao Ceará turistas e praticantes de esportes.

É quando as hélices giram mais velozmente, as árvores agitam-se quase a deixar as calçadas e sair em caminhada e as roupas estendidas nos varais reviram-se sobre si mesmas.

Tudo é inclinação e dobradura.

Mas há principalmente essa particularidade: o cheiro. Por aqui carregamos essa memória corrosiva a todos os lugares.

Por isso talvez os símbolos da cidade sejam também totens esquecidos da passagem abrasiva do tempo: um navio encalhado, um farol abandonado, uma biblioteca em obras intermináveis de frente para o mar. E o maior de todos: o esqueleto de um aquário.

Em seu lugar vão se erguendo novos objetos de adoração: faixas coloridas pintadas ao chão, cercaduras que limitam a rua, bancos como os de praças. Uma beleza.

Mas tudo na vizinhança da morte. Como se, mal nascidos, fossem condenados. Porque é como se, salpicado por certo espírito voluntarista, não levasse consigo uma elaboração que se espraie.

Não sei se me explico. Talvez não.

Talvez tenha estado impressionado com a persistência da corrosão entre nós, que vemos tudo acabar num tempo exíguo, que testemunhamos as novidades surgirem como tags de virais na internet e depois serem esquecidas.

Tudo a marca pessoal de um ou outro gestor que se enamore de um projeto, mas nunca da cidade inteira. Daí a visão particular e personalista das intervenções.

A cidade como um grande quintal e o gestor como o dono da bola que vai ditando as regras da brincadeira. E a gente matuta vai olhando e pescando e aprendendo a arte de dançar a música da vez.

É amargo supor que as melhores ideias se originem nesse pântano vaidoso. Eu mesmo me pergunto se não exagero.

Vejam o percurso do raciocínio circular como o vento corrosivo e a maresia que se desprende das ondas quebradas.

O texto que li falava sobre os malefícios causados ao planeta por muitas ondas partindo-se ao mesmo tempo em muitas praias do mundo.

Então penso que Fortaleza é abraçada por litoral, que atravessa a cidade uma nuvem química no sentido praia/sertão, comendo aos poucos estruturas metálicas, edificações, casas, livros, poetas, caranguejo, bicicleta, menino, amor.

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