Pular para o conteúdo principal

San Pedro

Levei mais de um mês até poder voltar. E agora estou aqui.  

Me pergunto se é ficção ou real. Se escrevo o que falo, e assim entendo melhor o que preciso entender. Ou se invento o que preciso falar, e desse modo me afasto do que é mais necessário.

De qualquer forma, levou todo esse tempo. Como uma volta para muito longe ao longo da qual vamos costurando as pontas e suturando ao mesmo tempo, atando pele com ele, desatando os fios enredados.

Voltei por causa de um sonho. Ontem, o San Pedro apareceu antropomorfizado. Não era o prédio em ruínas que é na frente da praia, mas uma pessoa que me procurava e dizia que tinha coisas a falar sem falar de fato.

O prédio, hoje apenas esqueleto deixado a comer-se de maresia, de repente tinha esse rosto magro e cabelos mais longos que me encarava e pedia para que entrasse mais fundo.

Não parasse em frente, mas entrasse e conhecesse as dependências. As mortes, os suores, os gozos e o frio. Ali dentro uma mulher parira uma menina, um homem se matara, um policial tinha brincado com armas, a avó de um suicida colara nas paredes todas as fotos do neto.  

Entendi que era hora de voltar. Reunir as sombras, situá-las em espaço e luz apropriados, apalpar o informe.

Depois pensei: era sonho, apenas. E nada disso importa. O tempo do San Pedro é outro. Está condenado. 

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Trocas e trocas

  Tenho ouvido cada vez mais “troca” como sinônimo de diálogo, ou seja, o ato de ter com um interlocutor qualquer fluxo de conversa, amistosa ou não, casual ou não, proveitosa ou não. No caso de troca, porém, trata-se sempre de uma coisa positiva, ao menos em princípio. Trocar é desde logo entender-se com alguém, compreender seu ponto de vista, colocar-se em seu lugar, mas não apenas. É também estar a par das razões pelas quais alguém faz o que faz, pensa o que pensa e diz o que diz. Didatizando ainda mais, é começar uma amizade. Na nomenclatura mercantil/militar de hoje, em que concluir uma tarefa é “entrega”, malhar é “treinar”, pensar na vida é “reconfigurar o mindset” e praticar é “aprimorar competências”, naturalmente a conversa passa à condição de troca. Mas o que se troca na troca de fato? Que produto ou substância, que valores e capitais se intercambiam quando duas ou mais pessoas se põem nessa condição de portadores de algo que se transmite? Fiquei pensando nisso mais te...

Atacarejo

Gosto de como soa atacarejo, de seu poder de instaurar desde o princípio um universo semântico/sintático próprio apenas a partir da ideia fusional que é aglutinar atacado e varejo, ou seja, macro e micro, universal e local, natureza e cultura e toda essa família de dualismos que atormentam o mundo ocidental desde Platão. Nada disso resiste ao atacarejo e sua capacidade de síntese, sua captura do “zeitgeist” não apenas cearense, mas global, numa amostra viva de que pintar sua aldeia é cantar o mundo – ou seria o contrário? Já não sei, perdido que fico diante do sem número de perspectivas e da enormidade contida na ressonância da palavra, que sempre me atraiu desde que a ouvi pela primeira vez, encantado como pirilampo perto da luz, dardejado por flechas de amor – para Barthes a amorosidade é também uma gramática, com suas regras e termos, suas orações subordinadas ou coordenadas, seus termos integrantes ou acessórios e por aí vai. Mas é quase certo que Barthes não conhecesse atacarejo,...

Projeto de vida

Desejo para 2025 desengajar e desertar, ser desistência, inativo e off, estar mais fora que dentro, mais out que in, mais exo que endo. Desenturmar-se da turma e desgostar-se do gosto, refluir no contrafluxo da rede e encapsular para não ceder ao colapso, ao menos não agora, não amanhã, não tão rápido. Penso com carinho na ideia de ter mais tempo para pensar na atrofia fabular e no déficit de imaginação. No vazio de futuro que a palavra “futuro” transmite sempre que justaposta a outra, a pretexto de ensejar alguma esperança no horizonte imediato. Tempo inclusive para não ter tempo, para não possuir nem reter, não domesticar nem apropriar, para devolver e para cansar, sobretudo para cansar. Tempo para o esgotamento que é esgotar-se sem que todas as alternativas estejam postas nem os caminhos apresentados por inteiro. Tempo para recusar toda vez que ouvir “empreender” como sinônimo de estilo de vida, e estilo de vida como sinônimo de qualquer coisa que se pareça com o modo particular c...