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Um passo com as mãos

Antes o espírito ágrafo, sem leitura nem ressaca.

Andar e não dar por nada, estar numa esquina sem que na esquina houvesse o caso de ver passar uma sombra. E estender a mão e ainda uma vez dizer que se detenha nessa curva e repare num encontro do vento com o vento.

Antes a boca fosse apenas pra assobiar e esperar a cerveja e contar piadas que os amigos ouviriam e ririam muito pouco porque ele jamais aprendeu a ciência dessa graça.

Antes percorresse muitos quilômetros a pé até parar. E quando parasse fosse já outro lugar, outro ano, outro tempo.

Feito cápsula, trampolim e queda. Um truque que vemos no circo, um despiste de quem é hábil na prestidigitação. 

Nada mais que um mecanismo de fazer passar muito rapidamente um objeto qualquer diante dos olhos. E, mesmo assim, não vemos. Não damos pela presença. Não intuímos que está lá.

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