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Modos de amar e desamar

O amor tem seus mapas, suas metas, suas métricas, seus lugares e estâncias, seus pontos de partida e interditos, espaços de parada e de encontro à mercê dos quais se perde o fôlego e se recupera a vida.

O amor tem vetos, vestes, maios e desmaios, sonhos e pesadelos habilmente tecidos por mãos de cujo futuro não conhecem sequer o palmo adiante dos próprios dedos.

O amor tem uma geografia: praias, dunas, campo, caatinga e cerrado, o rural e o urbano amalgamados, o litorâneo e alpino, o salgado ou doce.

O amor é tempo por vir, porvir, porventura, por causa e consequência, por fardo e fado, por tango e bolero, por certezas de muito e incertezas de nada.

O amor tem uma gramática transmitida de boca a boca: palavras que se repetem, nomes, significados reiterados, vocábulos descobertos apenas em dois, um jeito próprio de falar e pronunciar, uma ênfase no dito mais que no sugerido, um abraço descrito em pormenores exaustivos e  rememorado em prosa e verso, um cheiro que é retomado como figura de uma linguagem enterrada sob a unha, um gozo ainda não dicionarizado.

O amor é principalmente coreografia: um modo de estar na rua, de se dar os braços, uma região do corpo do outro visitada com mais frequência, um desejo irreprimível de explorar cada parte ainda mantida a distância, contorcionismo de pernas, um transe particular quando em contato de pele, um duplo ou triplo encaixe que é como a marca d’água de qualquer relação.  

O amor tem um ponto de ebulição e outro de condensação, estados químicos, trabalhos de pura volatilidade, anseios de que numa alquimia qualquer do dia o inventado passe à solidez do que noutra hora foi tão somente o experimentalmente vivido.

O amor tem matemática suficiente pra errar e acertar e nisso jamais encontrar o X ou qualquer outra letra ao cabo de tantas operações lógicas envolvendo múltiplas variáveis, raízes logarítmicas e constantes incontáveis.

O amor, claro, é jogo que se perde e ganha no qual perder ora é ganhar e ganhar ora é perder.  

O amor tem uma lógica cartesiana que dobra à esquerda quando bem imaginamos que irá virar à direita ou segue em linha reta até cair no mar.

O amor tem um senso de direção peculiar que nos afasta quando aproxima e chega quando vai embora, que arrasta em lentidão e devasta em velocidade, que faz correr apressado feito o mundo fosse acabar se vemos – um vislumbre, nesga, pedaço – algo que talvez remeta a outra coisa sobre a qual não temos certeza do que será.  

O amor nunca é certo, nunca chega, nunca tarda, nunca falha, nunca erra, nunca é, nunca passa, e é nisso que me fio sempre que me bate uma coisa ainda por chamar por um nome que eu não sei qual é.

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