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A dança

No canto pensava se a dança era o começo do sexo ou o contrário, se havia espaço ou tudo se fundia, se a música era excesso ou parte faltante, se tendia a se diluir nos outros ou a se condensar, se olhando o corpo da mulher insidiosa do outro lado supunha que o seu próprio corpo também fosse regido pela mesma régua.

Mas dança não é régua, dança é desmarginação. Dança é uma presença.

Abraçou-a mais ainda, o torso já muito suado, as pernas encaixadas no vão das coxas, a mão deslizando pelas costas. Luzes estroboscópicas, um ventilador ligado que ampliava a sensação de calor, as cortinas abertas, a barraca de cerveja coalhada de gente e a mesa com a parafernália dos DJs da noite, que tocava música caribenha.

Alguém pergunta se quero cachaça. Não rejeito. Outro oferece cerveja: bebo direto na garrafa.

Ela encosta no ouvido. Diz que dali a pouco iremos trepar. Não está sugerindo, mas ordenando. Tem pressa. Encara e repete: pressa, cada sílaba já enleada nos goles da bebida. O tom é o de quem precisa ir a qualquer lugar onde a esperam. 

Digo sim a todas as interrogações.

Dançamos ainda uma música. Duas. Saio, e ela fica sozinha. Acendo um cigarro na janela e a observo. Agora dança com outra, em seguida com outro. Uma mulher a abraça pelas costas.

Volto e a beijo no pescoço. Pressiono os dentes com força, deixo marcas, os caninos fundos que depois custam a apagar. 

Ela não protesta. Então segura a minha mão e me conduz escada abaixo. Na saída, cruzamos com um casal de colegas. Estão animados. Trocamos beijos, ela roça o lábio no meu, ele a surpreende com um abraço mais demorado. Prometemos voltar em instantes. 

Entramos no carro e o carro na madrugada do Centro. 

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