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O naufrágio da Femme Bateau

Agora entendo que tenha estado tanto tempo longe. Voltar a falar é um erro.

Vejam como é a língua, inventa territórios, funda impérios onde não há nada. Palavra mágica que consome e vive do próprio gozo.

Uma conversa pessoal é sempre essa busca de reinado fantástico e semeadura de vida onde quer que possa haver vida.

A língua é contra a aridez, jamais a favor. Por feroz e cortante, está plantando e nesse plantio espera e aguarda. Nem que seja a comprovação de que nada brota, nada vive, nada fecunda.

Daí que falar sozinho seja tão produtivo. Balbuciar, dizer uma novena íntima que ninguém jamais escute. Uma ladainha que ninguém jamais ouça.

Lembro da imagem da ressaca na praia umas poucas semanas atrás. A areia revolvida, as pedras deslocadas, os bancos destroçados, tudo que era paisagem natural e memória coberto de areia. Nada no lugar.

Uma tristeza, mas também alívio. Não era apenas eu que me punha fora da ordem. Era tudo, o mar, as calçadas, o vento, o guarda-sol arrastado e o letreiro da cidade enterrado feito uma dessas novelas de fantasia onde almas perambulam pelas ruas em pleno meio-dia.

Não voltei à praia desde então. O que encontraria? Passei a ter medo do mar, medo de que afunde na areia, medo de que tenham da noite para o dia assaltado o coração-casa fincado no aterro, medo de que passando por lá acabe parando sob a árvore e queira então desenrolar papéis antigos. 

Medo de haver eu mesmo me perdido na ressaca, uma Femme Bateau que torna à vida depois de ter estado 48 horas submersa. Avariada, carecendo de projeto, receosa de que não tenha mais condições de guardar nada, seca de qualquer sonho. 

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