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Da chuva sei apenas o cheiro

De pé no centro do quarto olho o fluxo de carros na avenida. Ordenado, unidirecional, reto. Tenho inveja das coisas que já tão cedo vão num caminho certo.

Ainda não são oito da manhã. Dormi mal, as vias respiratórias obstruídas, uma névoa encobrindo a vista como se andasse em meio à chuva, o colchão que maltrata as costas. O mundo de novo como três lanças atravessando o corpo.

Lembro que fez sol no São José. Crestada toda esperança. Não choverá.

Verdade que choveu na madrugada e a água entrou pela janela, molhando roupas e trapos atados em nó? É o que dizem. Não estava acordado e perdi. Da chuva guardei o cheiro tão somente, a sensação de que algo passou enquanto me distraía. Corrente de ar fresco que também é chuva. Fico com essa lembrança. O que não é, mas é como se fosse. O que não basta a ver se bastasse.

Deitado ainda, escrevia na cabeça o que escreveria quando levantasse finalmente. Mas, agora que escrevo, tudo é de outro modo, nada como quando olhava essa fresta da janela. Ouço louvores da igreja próxima, mulheres que despertam em oração. Quem se preocupa com o próximo assim às primeiras horas? Desejo o mal. Que o sino da igreja se parta e nenhuma graça seja alcançada.

A esta altura hora sou ainda mais egoísta. Desarmado de civilidade e medo, penso em mim, chafurdo nos planos, intento viagens e arquiteto firmamentos além dos quais o barco não despenca no desfiladeiro. 

Sobrevivo a quedas e ondas gigantes, nenhuma ressaca me joga pra longe.

Tenho pés fortes que me aprumam, mas isso é só a mentira que conto a mim mesmo logo ao acordar. Como uma pequena oração, minto que tenho energia para suportar o mundo e correr descalço pisando pedras e cortando o mato cerrado. Só depois é que reparo na carne toda ferida e os pés sangrando.

Então ando com os dedos pelo corpo. É maciço, inteiro. Apalpo, puxo os cabelos, estalo juntas. Deslizo a mão, paro. Seguro o próprio pau. Ganas de correr, entrar no mar e sentir que vou deixando o peso de lado. Entregar tudo a outra pessoa e dizer que não posso, não consigo, não sou forte.  

Mas ainda é cedo, e certa tristeza é permitida com o estômago vazio. Sequer bebi café. De manhã sei quase nada, as certezas batem em retirada como fileiras de soldados estropiados que desejam apenas voltar e foder com suas mulheres. Os credos desaparecem e as resoluções do dia anterior esboroam feito bolacha de água e sal.

Quero solidez. Um corpo-máquina. Mas só há esse pedaço de carne que tenho de salgar toda semana. O sal que evita estrago. O sal que conserva. 

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