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Lá estava ela

A mulher tinha os cabelos brancos, os olhos claros, sentou-se ao lado e depois de frente. Encarou-me.

Tinha uns modos suaves, muito leves, como se emitisse sinais que demoravam a chegar até as mãos e ao rosto. Uma lentidão orgânica, uma falta de pressa, a certeza de que estava ali e não em outro lugar.

Eu tenho os cabelos brancos desde os 23 anos. Espalharam-se primeiro aos poucos, depois foram se tornando o que são hoje, uma presença que define parte do que sou. Uso óculos de um modelo antigo, armação velha, e também tenho esses movimentos de gato preguiçoso que me fazem parecer mais ponderado do que devo ser. 

Exatamente como a mulher sentada à minha frente. Ela era bonita, disso me lembro bem. Que era bonita e me olhava com insistência. Tinha olhos azuis que fixava em mim de uma maneira que não esperava que uma mulher fizesse. Não lasciva, mas também não destituída de interesse sexual. 

Tinha dúvida se era um flerte ou apenas me reconhecia de outro lugar. Se era um desconhecido ou um rosto familiar. Se estava interessada ou curiosa.

Sessenta? Cinquenta e alguma coisa? Era uma idade possível. 

Um corte curto, cabelos acima do ombro, conversava com uma amiga que não reparava em nada. Uma mulher de idade semelhante que não me enxergava. Duas mulheres no café da livraria numa tarde de quarta-feira. Uma cena banal. Um homem observa. Esse homem sou eu. Pareço interessado, e de fato estou. Mais que interessado, curioso. 

A amiga falava, ela concordava de tempos em tempos e depois me olhava, e quando isso acontecia eu me sentia estupidamente paralisado. Sim, era um flerte. 

Eu tinha 35. Ela podia ser avó. Eu era pai. E, no entanto, lá estava ela, lá estava eu.

Acho que estive apaixonado durante meia hora, o tempo do café. Quis ir até sua mesa, mas não saberia o que dizer. Fiquei parado. Pedi outro café e depois a conta. A atendente sorriu, contou algo sobre o movimento no final de ano e em seguida bateu em retirada.

A mulher na mesa pôs então a mão no queixo, depois retirou uma mecha que lhe caía sobre os olhos. Simulava atenção na conversa. Era um jogo, mas não como qualquer jogo. Era um jogo simples, com duas regras. Ir ou ficar. Continuar ou interromper. 

Dois movimentos básicos, duas forças que determinam o que pode e o que não pode mudar. Ela talvez soubesse disso mais que eu. 

Era uma mulher bonita. Agora eu estava flertando deliberadamente. Estava desde o inicio. O que pensava? Que teríamos algo? O que eu pensava? 

Esperei que terminassem. Não terminaram. Levantei e fui embora. Ela acenou discretamente. A amiga se voltou. Voltei. Parei ao lado do caixa. Ela se levantou e apontou uma cadeira na mesa. Pediu que sentasse. 

Estive ali por algumas horas.  

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