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Dark (parte 2)

Dark passa-se numa pequena cidade alemã cujos pontos referenciais são uma floresta e uma usina nuclear, que se conectam de modo decisivo ao longo de dez episódios de cerca de 50 minutos. Seus habitantes estão às voltas com o desaparecimento de duas crianças, o que acaba levando a um clima de desconfiança e, por sua vez, ao rompimento de elos estabelecidos muitos anos atrás.

O sumiço dos meninos também dá início a uma montagem de quebra-cabeças no qual cada peça não refaz a figura original, mas leva a nova peça, talvez perdida no tempo. É preciso encontrá-la noutro lugar, que não é um aqui, mas um quando. É essa procura, detetivesca mas também filosófica, que o espectador acompanha.

Cito um único personagem, Jonas, por entender que se trata de fato do mais importante, embora a série, do início ao fim, faça desfilar mais de uma dezena de rostos, todos com papéis cruciais na cadeia de eventos narrados.
Um parêntese: em Dark, é fácil perder o fio da meada. Não se sinta burro se isso acontecer. O efeito é proposital. É exatamente o que os diretores pretendiam. Chega a ser meio óbvio, inclusive, mas o resultado quase nunca é gratuito, nem a miríade de personagens tão difícil de identificar. Talvez anotar o parentesco de cada um não seja um exagero. Ter em mãos a árvore genealógica ajuda bastante.

Agora falo rapidamente sobre Jonas, o viajante do tempo. O nexo entre passado, presente e futuro. Na bíblia, Jonas era um profeta que foi atirado às águas e engolido por uma baleia porque desobedeceu a uma ordem de Deus. Arrependido, acabaria sendo cuspido ainda vivo numa praia perto de Nínive, a cidade contra a qual ele se recusara a pregar. Uma cidade pecadora e corrupta, tal como a Winden de Dark. Os moradores de Nínive, assim como os de Winden, estavam degradados e mergulhados em culpa.

Quando os primeiros garotos de Winden desaparecem, o que parece apenas tragicamente incidental ganha contornos mais graves quando associado a um mundo secreto de pequenos delitos ou culpas que começa a vir à tona. Traições, mortes, conchavos, agressões, ciúmes e disputas. Tudo que tinha sido recalcado passa a emergir, e o passado da cidade se expõe cruamente.

Assim como o Jonas bíblico, o Jonas da série também foi engolido, não por uma baleia, mas por um buraco no espaço-tempo. Um buraco de minhoca, pra ser preciso. Também chega a um lugar devastado, mas no futuro. Também é profético – é portador de uma carta que escreve para si mesmo. Também é branqueado – a história bíblica fala que a pele do profeta se torna mais branca porque ele sobrevive três dias e três noites dentro da baleia.

Três dias, três noites. Três e três.

O número 33 é fundamental para compreender outro conjunto de referências de Dark: a cada ciclo de 33 anos, a Terra e outros astros se alinham, e essa conjunção especial causa uma perturbação no campo magnético do planeta. Grosso modo, quando isso acontece, uma fenda no tempo ou campo de Higgs se abre. É por ela que os personagens se deslocam. O bóson de Higgs, partícula prevista teoricamente em 1964, só foi comprovado poucos anos atrás, em 2011, após experimentos no Grande Colisor de Hádrons, o maior acelerador de partículas já construído. O LHC funciona em Genebra, na Suíça, a 175 metros abaixo do solo. Nele provou-se a teoria do físico britânico Peter Higgs, para quem a existência do bóson era fundamental nos esforços de compreender os eventos que se seguiram ao Big Bang.   

Na série, essa fenda no tempo é guardada por portas em cuja face lê-se a inscrição em latim Sic mundus creatus est (Assim o mundo foi criado). É uma frase antiga, presente na tábua esmeraldina, uma compilação de 15 máximas de Johannes Hispaniensis, no livro Secretum Secretorum, também conhecido como o livro que contém o segredo dos segredos. Foi escrito ainda na Idade Média. Situada numa das cavernas nas proximidades da usina nuclear, essa fissura tem uma particularidade: embora a narrativa sugira que o portal do tempo tenha sido aberto após um acidente nuclear como o de Chernobyl, as portinholas que dão passagem aos corredores do tempo são mais velhas – a inscrição em latim é apenas um índice disso.

Pra além desse aspecto, a frase Assim o mundo foi criado aponta para um dos problemas centrais de Dark: o conflito religião x ciência, fé x racionalidade. Ou seja, a criação da vida deu-se por vontade divina? Ou por uma explosão como aquela que havia aberto uma dimensão paralela na cidade de Winden? 

A chave para a resposta está em Noah. 

Análise: parte 3

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