Pular para o conteúdo principal

Cascas

Leio aos tropeços, trechos saltados de obras, cacos de frases. Fragmentos, arestas, pontas soltas. Saio pouco, quase nada. Um vizinho canta, primeiro sucessos de novelas, discos internacionais com rostos de estrelas da TV estampados nas capas. Depois forró. Assobia cada canção, em seguida acompanha com grunhidos e batidinhas. Passa horas assim.

Tento estabelecer um nexo entre cada coisa, mais ou menos como se montasse um mosaico. Música, pedaços de realidade, férias, a filha na sala vendo desenhos.

O desenho preferido agora é outro: As lendas. Um grupo de crianças, fantasmas, caveiras de açúcar e um animal cuja fome não passa. A morte sempre presente, mas uma morte festiva. Nunca o luto católico que aprendi na escola. A morte é alegre. 

Um fantasma chama-se Don Andrés. Teodora é uma menina que vive grudada no celular. Gosto das caveirinhas. Elas se chamam Finado e Moribunda.

O desenho acaba. Peço que volte, mas ela agora quer outro.

Começo a ler uma página ao acaso de um livro que apanho sem muita vontade: Cascas. Título bonito. Uma foto mostra três cascas de árvore dispostas sobre uma folha em branco. A textura é atraente, sobretudo imaginar a fricção entre os dois materiais, folha e casca. 

O autor é um filósofo que regressou a um campo de extermínio em 2011. O ponto de partida do seu ensaio, que reúne imagens e texto, é uma bétula. A palavra "bétula", precisamente. Como se descascasse a linguagem até chegar ao mais fundo do horror. Como se despisse a palavra dos seus sentidos.   

Tudo que varre e golpeia a superfície, tudo que adormece à espera de que o encontremos, tudo que repousa em descanso numa jornada de volta no tempo. 

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Museu da selfie

Numa dessas andanças pelo shopping, o anúncio saltou da fachada da loja: “museu da selfie”. As palavras destacadas nessa luminescência característica das redes, os tipos simulando uma caligrafia declinada, quase pessoal e amorosa, resultado da combinação do familiar e do estranho, um híbrido de carta e mensagem eletrônica. “Museu da selfie”, repeti mentalmente enquanto considerava pagar 20 reais por um saco de pipoca do qual já havia desistido, mas cuja imagem retornava sempre em ondas de apelo olfativo e sonoro, a repetição do gesto como parte indissociável da experiência de estar numa sala de cinema. Um museu, por natureza, alimenta-se de matéria narrativa, ou seja, trata-se de espaço instaurado a fim de que se remonte o fio da história, estabelecendo-se entre suas peças algum nexo, seja ele causal ou não. É, por assim dizer, um ato de significação que se estende a tudo que ele contém. Daí que se fale de um museu da seca, um museu do amanhã, um museu do mar, um museu da língua e por

Conversar com fantasmas

  O álbum da família é não apenas fracassado, mas insincero e repleto de segredos. Sua falha é escondê-los mal, à vista de quem quer que se dê ao trabalho de passar os olhos por suas páginas. Nelas não há transparência nem ajustamento, mas opacidade e dissimetria, desajuste e desconcerto. Como passaporte, é um documento que não leva a qualquer lugar, servindo unicamente como esse bilhete por meio do qual tento convocar fantasmas. É, digamos, um álbum de orações para mortos – no qual os mortos e peças faltantes nos olham mais do que nós os olhamos. A quem tento chamar a falar por meio de brechas entre imagens de uma vida passada? Trata-se de um conjunto de pouco mais de 30 fotografias, algumas francamente deterioradas, descubro ao folheá-lo depois de muito tempo. Não há ordem aparente além da cronológica, impondo-se a linearidade mais vulgar, com algumas exceções – fotos que deveriam estar em uma página aparecem duas páginas depois e vice-versa, como se já não nos déssemos ao trabalho d

Cansaço novo

Há entre nós um cansaço novo, presente na paisagem mental e cultural remodelada e na aparente renovação de estruturas de mando. Tal como o fenômeno da violência, sempre refém desse atavismo e que toma de empréstimo a alcunha de antigamente, esse cansaço se dá pela falsa noção da coisa estudadamente ilustrada, remoçada, mas cuja natureza é a mesma de sempre. Não sei se sou claro ou se dou voltas em torno do assunto, adotando como de praxe esse vezo que obscurece mais que elucida. Mas é que tenho certo desapreço a essas coisas ditas de maneira muito grosseira, objetivas, que acabam por ferir as suscetibilidades. E elas são tantas e tão expostas, redes delicadas de gostos e desgostos que se enraízam feito juazeiro, enlaçando protegidos e protetores num quintal tão miúdo quanto o nosso, esse Siará Grande onde Iracema se banhava em Ipu de manhã e se refestelava na limpidez da lagoa de Messejana à tarde. Num salto o território da província percorrido, a pequenez de suas dimensões varridas