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Carta do mágico

Dizer no papel, em caneta e traço, é reler vagarosamente cada palavra e esperar que seu peso e sentido criem raízes.

Escrevi isso um mês atrás. Era uma quinta, acordara triste e queria dizer o que não sabia, mas digitar era impossível. Então peguei caneta e bloco. Um antigo, enterrado na mochila. E rabisquei umas letras que depois eu mesmo tive dificuldades de entender. Eram garranchos, coisas das quais ia me desfazendo por necessidade, traços que se prolongavam uns nos outros, uns sobre os outros. Uma algaravia, mas era uma algaravia que criava ordem. Acho que os fiz assim exatamente para que não pudesse ler. Eram inteligíveis apenas no instante em que eram ditos. 

Queria também que fossem palavras que fundassem outra coisa, outra vida. Palavras que criassem mundos, que instaurassem um tempo, que interrompessem e que inventassem, que fizessem mágica. Mas no fundo eram palavras. 

Queria ser o mágico, alguém que deixasse de lado essa condição e passasse a outra, que se espiralasse no ar em volutas de matéria, que dispusesse objetos numa tabuleta diante de si e com eles realizasse o desejo, que embaralhasse cartas e as espalhasse no sofá e depois dissesse: escolha uma. E escolhesse. Essa seria então a carta certa. A carta jamais escrita. 

O que deseja o mágico? Que sua mágica não se desfaça, que tenha a ilusão de permanecer, que saiba antes de mais nada que cada movimento de mãos é um acordo entre duas pessoas. 

Um mágico, embora ilusório, é alguém que ama o que faz, que funda em golpes de ar esse amor, que devota o tempo ao volátil sentimento de que tudo depende da firmeza do olhar, que é também a fraqueza do olhar.

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