Pular para o conteúdo principal

Todas as horas do dia

Dificilmente temos planos pra cada dia, a segunda e a terça, a quarta e a quinta. Planejamos o fim: sábado e domingo. E esperamos que os demais dias da semana encontrem sua dinâmica, como se dependessem mais da sorte. Entregamos a quinta ao jogo de azar. As segundas, então, padecem do mal que é o receio de todo começo, de algo que se inicia depois do clímax do fim de semana.

Os dias depois do que acabou são sempre muito estéreis, é o que se costuma dizer a propósito desse intervalo de 72 horas que se estende da segunda até a quarta, quando se recobra algum ânimo e a vida parece novamente possível. Na quinta, a felicidade finalmente empina no horizonte. Na sexta somos alegres. No sábado, eufóricos. No domingo lamentamos que tudo tenha sido tão rápido.

E assim voltamos a habitar uma circularidade do tempo e dos espaços. Como se marcássemos um assento na roda-gigante e o esperássamos passar sempre. Como se a felicidade dependesse de estarmos naquele lugar, naquele instante. 

Nunca acreditei que o contrário fosse possível, os dias de semana trocando papéis com os do fim de semana, as horas de uns e outros misturadas como cartas de baralho, a sorte do sábado lançada na terça e a de domingo prevista na quinta.  E todo o giro como uma possibilidade concreta, real, plena. 

Nunca pretendi que a felicidade se prolongasse por mais horas do que as 24 de um dia festivo. Mas eis que o tempo altera regras e reconfigura prazos e datas. O tempo trabalha por lógica diferente, opera não com opostos ou justaposições. O tempo serve-se de uma matéria que não conhecemos muito bem. 

É a imprevisibilidade. Porosa, funda, arriscada. 

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Museu da selfie

Numa dessas andanças pelo shopping, o anúncio saltou da fachada da loja: “museu da selfie”. As palavras destacadas nessa luminescência característica das redes, os tipos simulando uma caligrafia declinada, quase pessoal e amorosa, resultado da combinação do familiar e do estranho, um híbrido de carta e mensagem eletrônica. “Museu da selfie”, repeti mentalmente enquanto considerava pagar 20 reais por um saco de pipoca do qual já havia desistido, mas cuja imagem retornava sempre em ondas de apelo olfativo e sonoro, a repetição do gesto como parte indissociável da experiência de estar numa sala de cinema. Um museu, por natureza, alimenta-se de matéria narrativa, ou seja, trata-se de espaço instaurado a fim de que se remonte o fio da história, estabelecendo-se entre suas peças algum nexo, seja ele causal ou não. É, por assim dizer, um ato de significação que se estende a tudo que ele contém. Daí que se fale de um museu da seca, um museu do amanhã, um museu do mar, um museu da língua e por

Conversar com fantasmas

  O álbum da família é não apenas fracassado, mas insincero e repleto de segredos. Sua falha é escondê-los mal, à vista de quem quer que se dê ao trabalho de passar os olhos por suas páginas. Nelas não há transparência nem ajustamento, mas opacidade e dissimetria, desajuste e desconcerto. Como passaporte, é um documento que não leva a qualquer lugar, servindo unicamente como esse bilhete por meio do qual tento convocar fantasmas. É, digamos, um álbum de orações para mortos – no qual os mortos e peças faltantes nos olham mais do que nós os olhamos. A quem tento chamar a falar por meio de brechas entre imagens de uma vida passada? Trata-se de um conjunto de pouco mais de 30 fotografias, algumas francamente deterioradas, descubro ao folheá-lo depois de muito tempo. Não há ordem aparente além da cronológica, impondo-se a linearidade mais vulgar, com algumas exceções – fotos que deveriam estar em uma página aparecem duas páginas depois e vice-versa, como se já não nos déssemos ao trabalho d

Cansaço novo

Há entre nós um cansaço novo, presente na paisagem mental e cultural remodelada e na aparente renovação de estruturas de mando. Tal como o fenômeno da violência, sempre refém desse atavismo e que toma de empréstimo a alcunha de antigamente, esse cansaço se dá pela falsa noção da coisa estudadamente ilustrada, remoçada, mas cuja natureza é a mesma de sempre. Não sei se sou claro ou se dou voltas em torno do assunto, adotando como de praxe esse vezo que obscurece mais que elucida. Mas é que tenho certo desapreço a essas coisas ditas de maneira muito grosseira, objetivas, que acabam por ferir as suscetibilidades. E elas são tantas e tão expostas, redes delicadas de gostos e desgostos que se enraízam feito juazeiro, enlaçando protegidos e protetores num quintal tão miúdo quanto o nosso, esse Siará Grande onde Iracema se banhava em Ipu de manhã e se refestelava na limpidez da lagoa de Messejana à tarde. Num salto o território da província percorrido, a pequenez de suas dimensões varridas