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Campo de presença

Revolver os materiais. A cada vez, a certeza de que retemos bem pouco. Muito escapa. Nada é garantido. E, no entanto, precisamos  de afundar e cavar. Mexer com cada coisa, ter nas mãos as formas e texturas mais várias. Experimentar derrota e vitória.

E depois revolver tudo em garimpo de afeto.

Uma pescaria, não para fisgar, mas para fincar. Cada linha lançada a tentativa de desenhar no ar um arco que seja também círculo, que seja a geometria de um sólido e não de fluido, que se conforme ao recipiente.

Revolver memória viva e morta.

Passado e presente, memória e afeto. Esquecer para lembrar, lembrar de esquecer. E, nesse exercício, recorda da aula na qual falou imprecisamente sobre campo de presença, um conceito semiótico escapadiço, como quase tudo numa disciplina assentada em fantasmagorias. 

Embora não entendesse, apesar de lhe faltarem as fundações mais consistentes, sentia que ali, a sua frente, havia uma grandeza afetiva em direção a qual sentia-se atraído, uma que era toda campo e presença e força. Era toda força, toda ânsia e pulsão, toda o Eros desejoso de um tempo apenas pra si, toda um corpo em carne e espírito. Não só uma coisa, não só outra. Mas a junção de estados iridescentes.

O campo desfez-se, de repente. Todo garimpo é uma expectativa, uma procura, um plano cuja sorte é remota. Em seu lugar, restaram esses materiais, com os quais tenta agora reparar o próprio corpo. Restaurar movimentos e fala. Repovoar-se de alguma esperança. Reviver sabe-se lá que amores. 

Ater-se ao que fica. E o que ficou? O que ficará?

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