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A palavra funda

Voltei a escrever numa brochura, caneta e papel. Letra e tempo.

Preciso esperar que minha mão alcance o pensamento, que está à frente, penso ligeiro e me demoro a dar comigo mesmo. Quando nos encontramos, estamos em ritmos diferentes, modos diferentes de sentir o sentido. É aí quando paro e penso no tempo de que precisamos para que algo aconteça. A escrita se efetive. O traço se firme na mão e a mão guie com segurança, e não aos atropelos.

Mas agora tudo vai em compasso, espero, a mão espera. Vamos andando ora acelerado, ora mais lentamente, como numa dança, uma coreografia. É um exercício de respiração pela palavra. Escrevo e leio e escrevo. Deixo pra trás, levo adiante.

Tinha perdido esse costume, como se diz. Era apenas digitação, a mão desacostumada a batucar as palavras sozinha, a mão direita sobrecarregada. Dividia tudo entre duas mãos que escrevem, todos os dedos empenhados na tarefa difícil de dizer.

E dizer tem sido cada vez mais custoso, cada vez mais necessário. Dizer com duas mãos, duas línguas, dizer com quatro mãos. Voltar a falar um alfabeto esquecido, dizer em ritmo natural, dizer sem sofrimento. Não porque o eliminamos, mas porque o incluímos como possibilidade. O sofrimento como parte da linguagem. Dizer a duas mãos o remoto, esperar e voltar, dizer em tempos diferentes.

Agora de volta ao modo manual, impondo a mim mesmo um tipo de espera. Espero por mim enquanto escrevo, volto para me alcançar, digo para que corra ou siga em frente ou avance ou recue.

Tudo isso a escrita de uma mão só precipita. Tudo isso o tempo de uma mão instaura. Dizer no papel, em caneta e traço, é reler vagarosamente cada palavra e esperar que seu peso e sentido criem raízes.

Mais do que nunca quero agora as palavras fundas. 

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