Pular para o conteúdo principal

Uma conversa com J

Um amigo escreve de Amsterdã. Está lá há três dias. Seu nome é J, é homem e casado, passa férias sozinho pela Europa. Apenas ontem me mandou mensagem dizendo que não sabia o que fazer.

No dia anterior conhecera um grupo de turistas macedônios. E um deles lhe interessara. Um mais jovem, mas não tão jovem, talvez 30 anos, cabelos já começando a ficar grisalhos em alguns pontos, braços fortes, costeletas, um risinho bobo de quem desconfia sempre do que quer que lhe digam.  

Então gostou dele, disse assim mesmo, de súbito. Um jato sem culpa: estava gostando e gostou. Foi em frente. Convidou o rapaz pra sair, deram uma volta pela cidade, beberam café e depois cerveja.

Eu não conheço Amsterdã. Brinquei que agora poderiam se ver sempre, se fosse o caso, porque os voos seriam mais frequentes saindo diretamente da cidade a partir do ano que vem. Um aeroporto ligando a capital até o mundo, criando mais laços com o continente. Se somos uma esquina, como gostam de dizer as autoridades do estado, vamos tirar proveito de morar numa esquina. E quem mais sabe ganhar com a vida nas esquinas? Prostitutas, bêbados, marginalizados de forma geral.

J não disse nada, ignorou essa chacota autodepreciativa e continuou com o relato. Isso era novo nele, acusava uma gravidade que custava a reconhecer. 

Contou: beberam na rua e entraram numa boate, onde cada um escolheu uma mulher. Me pergunto por quê. Se já sentiam o que sentiam, por que resolveram disfarçar? Mais tarde, no hotel, fizeram sexo. Um sexo diferente. Sexo entre dois homens que olham um para o outro como se só pudessem fazer aquilo naquelas circunstâncias especiais e nunca mais. Sexo como uma experiência que jamais iria se repetir. Sexo em zona permitida, uma área fora de intersecção.

E agora se punha culpado ao telefone porque tinha saudade de D, queria ligar e marcar um novo encontro. Pelo que entendi, D ficaria na cidade só até aquele dia. 

Eu lhe disse: J, você sabe o que é amor? Ele ficou incomodado ao ouvir a palavra. Eu precisei explicar.

O amor é tudo isso, é entrega de corpo com hora pra acabar. Ame e depois volte. Estará tudo do mesmo jeito, menos você. 

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Trocas e trocas

  Tenho ouvido cada vez mais “troca” como sinônimo de diálogo, ou seja, o ato de ter com um interlocutor qualquer fluxo de conversa, amistosa ou não, casual ou não, proveitosa ou não. No caso de troca, porém, trata-se sempre de uma coisa positiva, ao menos em princípio. Trocar é desde logo entender-se com alguém, compreender seu ponto de vista, colocar-se em seu lugar, mas não apenas. É também estar a par das razões pelas quais alguém faz o que faz, pensa o que pensa e diz o que diz. Didatizando ainda mais, é começar uma amizade. Na nomenclatura mercantil/militar de hoje, em que concluir uma tarefa é “entrega”, malhar é “treinar”, pensar na vida é “reconfigurar o mindset” e praticar é “aprimorar competências”, naturalmente a conversa passa à condição de troca. Mas o que se troca na troca de fato? Que produto ou substância, que valores e capitais se intercambiam quando duas ou mais pessoas se põem nessa condição de portadores de algo que se transmite? Fiquei pensando nisso mais te...

Atacarejo

Gosto de como soa atacarejo, de seu poder de instaurar desde o princípio um universo semântico/sintático próprio apenas a partir da ideia fusional que é aglutinar atacado e varejo, ou seja, macro e micro, universal e local, natureza e cultura e toda essa família de dualismos que atormentam o mundo ocidental desde Platão. Nada disso resiste ao atacarejo e sua capacidade de síntese, sua captura do “zeitgeist” não apenas cearense, mas global, numa amostra viva de que pintar sua aldeia é cantar o mundo – ou seria o contrário? Já não sei, perdido que fico diante do sem número de perspectivas e da enormidade contida na ressonância da palavra, que sempre me atraiu desde que a ouvi pela primeira vez, encantado como pirilampo perto da luz, dardejado por flechas de amor – para Barthes a amorosidade é também uma gramática, com suas regras e termos, suas orações subordinadas ou coordenadas, seus termos integrantes ou acessórios e por aí vai. Mas é quase certo que Barthes não conhecesse atacarejo,...

Projeto de vida

Desejo para 2025 desengajar e desertar, ser desistência, inativo e off, estar mais fora que dentro, mais out que in, mais exo que endo. Desenturmar-se da turma e desgostar-se do gosto, refluir no contrafluxo da rede e encapsular para não ceder ao colapso, ao menos não agora, não amanhã, não tão rápido. Penso com carinho na ideia de ter mais tempo para pensar na atrofia fabular e no déficit de imaginação. No vazio de futuro que a palavra “futuro” transmite sempre que justaposta a outra, a pretexto de ensejar alguma esperança no horizonte imediato. Tempo inclusive para não ter tempo, para não possuir nem reter, não domesticar nem apropriar, para devolver e para cansar, sobretudo para cansar. Tempo para o esgotamento que é esgotar-se sem que todas as alternativas estejam postas nem os caminhos apresentados por inteiro. Tempo para recusar toda vez que ouvir “empreender” como sinônimo de estilo de vida, e estilo de vida como sinônimo de qualquer coisa que se pareça com o modo particular c...