Pular para o conteúdo principal

Um outro exercício

Agora estou na água novamente. Corri um pouco por medo, um pouco por frio. 

Tem sempre esse instante em que vista do mar Fortaleza parece a melhor cidade do mundo e talvez seja mesmo, uma ponte ao lado, do outro espigão e na frente o Mincharia, então continuo nesse passo torto do bairrismo meio brega ou do sentimento fácil.

Sentimento fácil, repito, e já estou dando umas braçadas, mas no fundo queria mesmo era estar na areia deitado fumando e olhando o céu sem qualquer nuvem, apenas uma mesma tonalidade de azul. A areia cedendo aos poucos e desenhando-se no formato do corpo, que fica ali como uma marca d’água.

Solzinho fraco, coado, talvez veja um filme antes de dormir, um terror que me fará querer a mesma vida sempre.

Uma menina passa na bicicleta, depois outra, acho que vou deixar o carro molhado e todo sujo de areia, lembro do ar-condicionado do cinema e em seguida planejo não me atrasar tanto para o aniversário da minha sobrinha, organizo a semana mentalmente, segunda reunião e aula, terça bicicleta e leitura, quarta aula e quinta também, sexta trabalho dobrado e fim de semana mais trabalho, semana que vem do mesmo jeito. 

Na verdade todo o mês de setembro será mais ou menos igual, à exceção de outubro, quando tudo será passado, e novembro por causa das férias e nas férias uma viagem e na viagem aí sim uma outra vida possível.

Escrever todo dia, anoto esse tópico, mas quinta é feriado, dia 7, na escola eu me punha fantasiado pra marchar como soldado embora não conseguisse dar dois passos sem achar que aquilo era a coisa mais idiota do mundo. E de fato era.  

Como boa parte das coisas que falamos e dizemos e prometemos um ao outro enquanto estamos na água ou sentados na areia olhando pro céu sem nuvens de Fortaleza. 

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Museu da selfie

Numa dessas andanças pelo shopping, o anúncio saltou da fachada da loja: “museu da selfie”. As palavras destacadas nessa luminescência característica das redes, os tipos simulando uma caligrafia declinada, quase pessoal e amorosa, resultado da combinação do familiar e do estranho, um híbrido de carta e mensagem eletrônica. “Museu da selfie”, repeti mentalmente enquanto considerava pagar 20 reais por um saco de pipoca do qual já havia desistido, mas cuja imagem retornava sempre em ondas de apelo olfativo e sonoro, a repetição do gesto como parte indissociável da experiência de estar numa sala de cinema. Um museu, por natureza, alimenta-se de matéria narrativa, ou seja, trata-se de espaço instaurado a fim de que se remonte o fio da história, estabelecendo-se entre suas peças algum nexo, seja ele causal ou não. É, por assim dizer, um ato de significação que se estende a tudo que ele contém. Daí que se fale de um museu da seca, um museu do amanhã, um museu do mar, um museu da língua e por

Conversar com fantasmas

  O álbum da família é não apenas fracassado, mas insincero e repleto de segredos. Sua falha é escondê-los mal, à vista de quem quer que se dê ao trabalho de passar os olhos por suas páginas. Nelas não há transparência nem ajustamento, mas opacidade e dissimetria, desajuste e desconcerto. Como passaporte, é um documento que não leva a qualquer lugar, servindo unicamente como esse bilhete por meio do qual tento convocar fantasmas. É, digamos, um álbum de orações para mortos – no qual os mortos e peças faltantes nos olham mais do que nós os olhamos. A quem tento chamar a falar por meio de brechas entre imagens de uma vida passada? Trata-se de um conjunto de pouco mais de 30 fotografias, algumas francamente deterioradas, descubro ao folheá-lo depois de muito tempo. Não há ordem aparente além da cronológica, impondo-se a linearidade mais vulgar, com algumas exceções – fotos que deveriam estar em uma página aparecem duas páginas depois e vice-versa, como se já não nos déssemos ao trabalho d

Cansaço novo

Há entre nós um cansaço novo, presente na paisagem mental e cultural remodelada e na aparente renovação de estruturas de mando. Tal como o fenômeno da violência, sempre refém desse atavismo e que toma de empréstimo a alcunha de antigamente, esse cansaço se dá pela falsa noção da coisa estudadamente ilustrada, remoçada, mas cuja natureza é a mesma de sempre. Não sei se sou claro ou se dou voltas em torno do assunto, adotando como de praxe esse vezo que obscurece mais que elucida. Mas é que tenho certo desapreço a essas coisas ditas de maneira muito grosseira, objetivas, que acabam por ferir as suscetibilidades. E elas são tantas e tão expostas, redes delicadas de gostos e desgostos que se enraízam feito juazeiro, enlaçando protegidos e protetores num quintal tão miúdo quanto o nosso, esse Siará Grande onde Iracema se banhava em Ipu de manhã e se refestelava na limpidez da lagoa de Messejana à tarde. Num salto o território da província percorrido, a pequenez de suas dimensões varridas