Pular para o conteúdo principal

Mãe Jussara

Tenho um recorte de jornal nas mãos, mas não sei o que fazer com ele. É um pedaço da Mãe Jussara, um trecho de aconselhamento amoroso, gênero clássico nos folhetins.

Nele a cartomante, não sei se posso chamar assim, sugere a uma mulher que encare o fim do relacionamento com naturalidade. E conclui: você ainda será muito feliz. Não recomenda consulta a astros, tampouco receita mandingas para trazer o homem de volta à casa. Apenas joga a real: o amor acabou. Seja corajosa e mude tudo ao seu redor. Não há como recuperar o que foi perdido. Será melhor assim. E fim de papo.

Eu não costumo guardar papéis, sequer minhas colunas guardo mais. Vão todas pro lixo, todas acumuladas em pilhas no quarto dos fundos que depois serão recolhidas pelo porteiro da noite e entregues a um catador de material reciclável. Mas esse pedaço eu guardei. Estava dobrado como um recadinho enviado por alguém do futuro.

Na minha estante, atrás de um livro, perto de um Pynchon e de ‘Nossas noites’, convenientemente mantido a salvo de uma faxina, mas não escondido o bastante para que nunca mais o achasse. Como as coisas que encontramos porque precisamos encontrar.  

Desdobrei e li devagar, procurando descobrir por que estava ali, por que tinha guardado, se fora eu mesmo e não outra pessoa que o enfiara entre os livros que nunca olhava muito bem, por que tinha chamado atenção.

Vi que era o tom desencantado da Mãe Jussara o que importava.  E me dei conta de que também ela poderia sofrer suas dores. E era isso, o fato de que falava do coração, o que interessava.

Como uma cartomante resolve suas agonias da alma? Faz do próprio remédio um anteparo, recorre a amigas, escreve no baralho, lê as próprias mãos? Ignora sinais? Envia a si mesma uma carta na qual diz coisas que diria a qualquer uma?

Era um mistério o modo próprio como uma mulher que vê o futuro e adivinha a sorte alheia solucionaria as coisas que aconteciam a um palmo do nariz.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Trocas e trocas

  Tenho ouvido cada vez mais “troca” como sinônimo de diálogo, ou seja, o ato de ter com um interlocutor qualquer fluxo de conversa, amistosa ou não, casual ou não, proveitosa ou não. No caso de troca, porém, trata-se sempre de uma coisa positiva, ao menos em princípio. Trocar é desde logo entender-se com alguém, compreender seu ponto de vista, colocar-se em seu lugar, mas não apenas. É também estar a par das razões pelas quais alguém faz o que faz, pensa o que pensa e diz o que diz. Didatizando ainda mais, é começar uma amizade. Na nomenclatura mercantil/militar de hoje, em que concluir uma tarefa é “entrega”, malhar é “treinar”, pensar na vida é “reconfigurar o mindset” e praticar é “aprimorar competências”, naturalmente a conversa passa à condição de troca. Mas o que se troca na troca de fato? Que produto ou substância, que valores e capitais se intercambiam quando duas ou mais pessoas se põem nessa condição de portadores de algo que se transmite? Fiquei pensando nisso mais te...

Atacarejo

Gosto de como soa atacarejo, de seu poder de instaurar desde o princípio um universo semântico/sintático próprio apenas a partir da ideia fusional que é aglutinar atacado e varejo, ou seja, macro e micro, universal e local, natureza e cultura e toda essa família de dualismos que atormentam o mundo ocidental desde Platão. Nada disso resiste ao atacarejo e sua capacidade de síntese, sua captura do “zeitgeist” não apenas cearense, mas global, numa amostra viva de que pintar sua aldeia é cantar o mundo – ou seria o contrário? Já não sei, perdido que fico diante do sem número de perspectivas e da enormidade contida na ressonância da palavra, que sempre me atraiu desde que a ouvi pela primeira vez, encantado como pirilampo perto da luz, dardejado por flechas de amor – para Barthes a amorosidade é também uma gramática, com suas regras e termos, suas orações subordinadas ou coordenadas, seus termos integrantes ou acessórios e por aí vai. Mas é quase certo que Barthes não conhecesse atacarejo,...

Projeto de vida

Desejo para 2025 desengajar e desertar, ser desistência, inativo e off, estar mais fora que dentro, mais out que in, mais exo que endo. Desenturmar-se da turma e desgostar-se do gosto, refluir no contrafluxo da rede e encapsular para não ceder ao colapso, ao menos não agora, não amanhã, não tão rápido. Penso com carinho na ideia de ter mais tempo para pensar na atrofia fabular e no déficit de imaginação. No vazio de futuro que a palavra “futuro” transmite sempre que justaposta a outra, a pretexto de ensejar alguma esperança no horizonte imediato. Tempo inclusive para não ter tempo, para não possuir nem reter, não domesticar nem apropriar, para devolver e para cansar, sobretudo para cansar. Tempo para o esgotamento que é esgotar-se sem que todas as alternativas estejam postas nem os caminhos apresentados por inteiro. Tempo para recusar toda vez que ouvir “empreender” como sinônimo de estilo de vida, e estilo de vida como sinônimo de qualquer coisa que se pareça com o modo particular c...