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Engolir furacões

Antes de dormir, depois do fim do mundo, pensei que morreria se os furacões chegassem ao Ceará e os ventos de 260 km/h atingissem o prédio velho onde moro.

É uma construção de trinta anos com pequenas rachaduras aqui e ali, ainda muito firme mas não o bastante pra que eu pegue no sono sem me preocupar com a queda.

Então fiquei olhando o celular e no celular vi uma imagem de três olhos se formando no mar do Caribe. Eles andavam em direção contrária à nossa, quer dizer, subiam rumo aos EUA, deixando a gente pra trás, isso se levarmos essa história de orientação dos mapas a sério.

Mas e se um deles quisesse voltar, se um desistisse, se um se atrevesse a surpreender, se entendesse que, para se diferenciar, o melhor seria devastar uma região cuja população jamais sonharia em ser acordada por rajadas furiosas às seis da manhã?

Foi pensando nisso que adormeci, foi pensando no fim do mundo e em todo o fim possível, o fim da vida, o fim da cerveja, o fim do cigarro e dos livros, o fim da corrida, o fim da era espacial, o fim da humanidade, o fim do amor, o fim da tarde, o fim resfolegante do sexo, o fim da ressaca, o fim melancólico da paixão, o fim da doença, o fim do fim.

Pensei nas formações dos furacões, um vento que se soma a outro, um choque de temperaturas no meio do mar. Um Atlântico e um Pacífico, nomes quase sempre tão plácidos, se desentendem e passam a agir como deidades medievais acertando as contas com o humano.

E cospem esses andarilhos pra nos meter medo. Pensei que, lá no fundo, lá no fim, entre um oceano e outro, nada há que separe, nem mesmo a cor das águas, e lembrei da história do pescador que jamais atravessava a risca do mar, uma linha imaginária após a qual as águas se tornavam mais revoltas.

Não atravessava porque enjoava, porque temia, porque achava que morreria se o barco virasse. Hoje pescava apenas da ponte, os pés no concreto, o azul beliscando delicadamente a boca arreganhada dos peixes.

São dois tipos de mar, de pescaria, de gente, de fim, a calmaria e a tormenta, a revolta em superfície e a massa aquosa sacudindo-se inteira sob a mansidão das ondas. 

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