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Fim adiado

Sobrevivemos. O mundo não acabou. Continuamos aqui exatamente como antes, acordamos e dormimos e o mundo permaneceu ou nós permanecemos nele enquanto tudo se esgota às prestações. De uma forma ou de outra, não houve esse fim teatral, o encerramento abrupto das atividades, a suspensão irrevogável da vida como a conhecemos nos filmes.

Houve o dia seguinte, e talvez essa seja a maneira mais cruel de dizer que termina. O dia posterior, com seus ritos de normalização.

Depois do fim, eu acordei e pus café na xícara e recebi dois pacotes pelos Correios. Abri esses pacotes. Eram livros.

Quatro. Todos queridos, todos adiáveis, livros sobre os quais pretendo falar em algum momento, mas não livros urgentes. Ou talvez não sejam urgentes apenas agora, quando olho pra vida e ela perde ênfase.

A vida sem ênfase. Como num poema ao contrário, triste das coisas consideradas sem importância ou algo parecido. Acho que foi Drummond que falou isso.

O fato é que precisamente essa família de coisas continua enquanto depositamos os esforços na elaboração de um fim apoteótico.

Um fim enfático que se mostra depois sem ênfase.

Que tenhamos esperança de que um dia as coisas terminem assim, isso é o que mais me surpreende nas pessoas. Que as coisas cheguem a termo em gritarias e choro e corpos mutilados, egos despedaçados implorando até não restar mais nada.

O fim quase nunca é assim. O fim é banal. É o bom dia do porteiro, uma conta esquecida, uma música antiga inesperadamente tocada no rádio do vizinho que chega até o quarto depois de atravessar paredes e janelas, num gasto de energia pra se dissipar. 

Mas nada se dissipa por inteiro. 

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