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Futuro

Futuro é uma palavra gorda, dessas que vão adiante sem atinar para o que vem atrás. Anda sem espera de que os dias acompanhem, como um atleta que tem pressa mais que vontade de completar a prova. Um ver que o tempo passa ao acaso e não ao gosto da gente. Tem tanto de passado quanto de fantasia.

O futuro na cidade é uma praia e um bairro distante, isolado numa periferia, num enlace de outras margens, mas apontando para o que ainda virá e dele esperando não o malogro, mas a sorte: Bom Futuro. E a praia é uma estação de desejos onde se depositam as palavras para que se fertilizem: Praia do Futuro.

Falar desse tempo é ter com a ruína. Tempo dividido entre duas noções extremas: requalificar e ocupar. A primeira como expressão de uma gramática do poder que faz as vezes de mágica – não se pode entender a ação de revitalizar o que já tem vida senão por meio de uma manobra de força, política e ideológica. A segunda noção como um preenchimento nas suas múltiplas acepções – atividade e habitação, morar e afetar-se, ocupar-se inteiramente do sentimento.

Mas futuro também é recuo, e nisso o admiro porque é como o viajante que cruza as fronteiras, embaralhando passado e presente, como a vasculhar memórias pessoais, num garimpo de afetos. Exemplo: meu avô jogava cartas. Viajava os sertões com baralho marcado. Era um trapaceiro, em bom português, mas não desonesto. Jogava, apenas. Um dia, entrou numa confusão com um soldado valente, desses que povoam histórias antigas. Andava dia e noite assombrado por naipes e números, o peito golpeado do desejo de viagem. Mas foi incapaz de adivinhar o que lhe aconteceria dali a algumas horas. Matou e morreu.

Um tio extraviou-se no Amazonas quando eu ainda era criança. Cresci ouvindo falar do homem que foi e não tornou. Minha avó sempre esperou que o futuro trouxesse, se não ele, ao menos notícias suas, uma carta, um bilhete, uma letra que fosse. Uma inicial que atestasse a vivência do que falta quando o que falta é mais que ausência: é a total incapacidade de ter com o futuro uma relação. Jamais foi compensada. Na sua casa, sempre manteve uma janela aberta e uma cama preparada. Minha avó era toda espera.

O outro avô era mascate. Passava todo o tempo fora, viajante também. Não o conheci, senão por meio de gestos e outras marcas de consanguinidade que se repetem à medida que a gente se dilui nos outros. Quanto dele há em mim? Tinha olhos claros e pele alva. Era vadio, dado a namoros, desamparado por uma saudade que não se aplacava. Não sei em que ano morreu. Eu o vejo no futuro como um borrão sorridente.   

Andei folheando álbuns de família em casa, desses que se abrem sem querer, numa manobra de risco pelo que carregam de volta ao passado. Numa das fotos, apareço na praia. Tenho 4 anos e fujo de uma onda, que tem pouco mais de 20 centímetros e quebra mansamente na areia. A mãe está ao lado. O pai não aparece no quadro. Há uma jangada. Perto dela, um vendedor de cocos.

Nessa época, o futuro era como uma rede lançada ao mar pela qual se espera sem saber o que trará à areia. 

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