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Contra o mar

Uma história que fosse contra o mar, a metáfora, o mar, a materialidade, o mar, a presença forte que se desfaz, o mar, essa massa contra a qual a cidade cresceu, à revelia do qual se expandiu e à qual hoje se volta, numa retomada histórica, espécie de reencontro com o que de início pareceu errado ou apenas desimportante, o mar todo cheio desses clichês marítimos, uma fronteira na qual a gente se dissolve ou procura contato com essa fluidez quase uterina da qual somos expulsos e para a qual voltamos sempre que damos com a cara na parede, o mar como quintessência de uma beleza natural sem par em qualquer outro tipo de geografia, o mar inigualável em sua majestosa indiferença e toda essa bobajada que vem à cabeça quando a gente se põe de frente e para e procura responder a cada uma dessas perguntas sem resposta que perseguem desde que o mundo é mundo.

Nunca tinha precisado tanto do mar como agora, uma presença que é ausência e vice-versa, nunca havia escapado ao mar como neste dia, dele fugindo mais que, quando menino, certa vez, ao ir se aproximando o fim de semana da festa e ele, como dançarino, obviamente tinha de dançar ao lado da garota de quem todos sabiam que ele gostava, enfiou-se no quarto, de lá não saindo pelas duas horas seguintes.  

A garota dançou sem ele. Levou três quedas. Nunca mais se falaram.

Mas era a vergonha que o empurrava pra longe. Feito o mar agora, a vergonha afastava, mas também puxava de volta, feito essa onda fraca que depois surpreende sugando com força os pés, e desequilibra e desorienta.

Então, em casa, pensava: e se fosse em frente? E se fosse ao mar? E se caísse? Morreria da queda?

Não sabe até hoje. 

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