Pular para o conteúdo principal

A vida entre condomínios



Parece que a vida política do Brasil vive agora entre dois condomínios, o Aquarius e o Solaris. O primeiro representa uma resistência da classe média ilustrada contra o capital – com todas as reservas possíveis ao heroísmo salvacionista contido aí. Uma recusa, em suma, ao que atropela a vida, impondo-se como força da natureza. 

Não é apenas o endereço da personagem Clara, vivida por Sonia Braga no filme homônimo de Kleber Mendonça Filho. Aquarius também dá nome a uma era cujas características são uma maior consciência, humanitarismo, revoluções, igualdade etc.

É o tempo de abolir as fronteiras entre os povos e classes sociais. É uma era de retomada da utopia, e os modos do autoritarismo entram em colapso. Simbolicamente, a era de Aquarius equivale a um salto espiritual, com o humano mais próximo de si. Já vivemos esse tempo ou ainda tateamos às cegas?

É aí que entra outro condomínio, o Solaris. Centro de uma operação policial, a Lava Jato, é onde se localiza o suposto triplex de Lula reformado por empreiteiras que se beneficiaram do esquema na Petrobras. Sim, é aquele apartamentinho vagabundo, nas palavras de Eduardo Paes, com o qual o ex-presidente mais popular da história do Brasil se complicou no Ministério Público Federal. E pelo qual deve ser denunciado à Justiça e se tornar réu.

Solaris também é um filme, do russo Andrei Tarkovski (1932-1936), no qual um grupo de cientistas viaja a uma estação espacial e presencia eventos insólitos, como a comunicação com uma inteligência extra-terrena. Lá, experimentam principalmente uma desestruturação do tempo, nesse que é uma espécie de “2001 – uma odisseia no espaço” do bloco soviético.

Política e esteticamente, os condomínios Aquarius e Solaris estão em campos opostos. Um, dominado pelo capital imobiliário, é deserto antes de se tornar ruína, e conta com uma mocinha de novela como sua última esperança. Num dos trechos do filme de Kleber Mendonça, um representante da construtora admite que nem enxerga mais o prédio, encravado de frente à praia de Boa Viagem. Ali, está presente o rosto do vilão de folhetim, com traços evidentes de cinismo e maldade decalcados sem nuance.

Facilita a adesão ao heroísmo de Clara, que, embora proprietária de cinco outros imóveis, decide lutar contra a inexorabilidade da força do dinheiro. E tome Maria Bethânia para ajudar a embalar o discurso de conciliação entre classes, entre o Pina e Brasília Teimosa, mais explícito ainda numa cena inicial que instala certa tensão, mas logo trata de dissolvê-la, numa pegadinha do Mallandro: enquanto os espectadores esperam um arrastão – guiados pela mão do próprio diretor -, o que se vê é uma dinâmica de grupo à beira-mar resolvendo impasses sociais.

Cineasta de raro talento, Kleber Mendonça criou uma espécie de “Pollyanna engajada”. Em seu filme, o condomínio é signo de conciliação e ensaio visual de preservação da memória (de uma classe), com as personagens – pobres e ricas - irmanando-se num tributo tardio à democracia racial de Gilberto Freyre. 

Mas eis que, logo ali, está Solaris. O condomínio do Brasil real, com suas ambiguidades e propriedade desconhecida, sua mistura entre ficção e veracidade, entre o público e o privado, a política e o banditismo, fala mais ao presente do que a narrativa edulcorada de identificação fácil. Solaris é uma pergunta sem resposta. Aquarius oferece todas as respostas. Um é incômodo. O outro é conforto para a plateia. 

Postagens mais visitadas deste blog

Museu da selfie

Numa dessas andanças pelo shopping, o anúncio saltou da fachada da loja: “museu da selfie”. As palavras destacadas nessa luminescência característica das redes, os tipos simulando uma caligrafia declinada, quase pessoal e amorosa, resultado da combinação do familiar e do estranho, um híbrido de carta e mensagem eletrônica. “Museu da selfie”, repeti mentalmente enquanto considerava pagar 20 reais por um saco de pipoca do qual já havia desistido, mas cuja imagem retornava sempre em ondas de apelo olfativo e sonoro, a repetição do gesto como parte indissociável da experiência de estar numa sala de cinema. Um museu, por natureza, alimenta-se de matéria narrativa, ou seja, trata-se de espaço instaurado a fim de que se remonte o fio da história, estabelecendo-se entre suas peças algum nexo, seja ele causal ou não. É, por assim dizer, um ato de significação que se estende a tudo que ele contém. Daí que se fale de um museu da seca, um museu do amanhã, um museu do mar, um museu da língua e por

Conversar com fantasmas

  O álbum da família é não apenas fracassado, mas insincero e repleto de segredos. Sua falha é escondê-los mal, à vista de quem quer que se dê ao trabalho de passar os olhos por suas páginas. Nelas não há transparência nem ajustamento, mas opacidade e dissimetria, desajuste e desconcerto. Como passaporte, é um documento que não leva a qualquer lugar, servindo unicamente como esse bilhete por meio do qual tento convocar fantasmas. É, digamos, um álbum de orações para mortos – no qual os mortos e peças faltantes nos olham mais do que nós os olhamos. A quem tento chamar a falar por meio de brechas entre imagens de uma vida passada? Trata-se de um conjunto de pouco mais de 30 fotografias, algumas francamente deterioradas, descubro ao folheá-lo depois de muito tempo. Não há ordem aparente além da cronológica, impondo-se a linearidade mais vulgar, com algumas exceções – fotos que deveriam estar em uma página aparecem duas páginas depois e vice-versa, como se já não nos déssemos ao trabalho d

Cansaço novo

Há entre nós um cansaço novo, presente na paisagem mental e cultural remodelada e na aparente renovação de estruturas de mando. Tal como o fenômeno da violência, sempre refém desse atavismo e que toma de empréstimo a alcunha de antigamente, esse cansaço se dá pela falsa noção da coisa estudadamente ilustrada, remoçada, mas cuja natureza é a mesma de sempre. Não sei se sou claro ou se dou voltas em torno do assunto, adotando como de praxe esse vezo que obscurece mais que elucida. Mas é que tenho certo desapreço a essas coisas ditas de maneira muito grosseira, objetivas, que acabam por ferir as suscetibilidades. E elas são tantas e tão expostas, redes delicadas de gostos e desgostos que se enraízam feito juazeiro, enlaçando protegidos e protetores num quintal tão miúdo quanto o nosso, esse Siará Grande onde Iracema se banhava em Ipu de manhã e se refestelava na limpidez da lagoa de Messejana à tarde. Num salto o território da província percorrido, a pequenez de suas dimensões varridas