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Stranger Things, viagem no tempo e o Mundo Invertido



De passagem (com muito spoiler) pra dizer que abomino parcialmente a Teoria sobre Stranger Things.

E dizer teoria é o bastante, porque todos sabem do que se trata. A teoria, na verdade, são duas. 

Resumidamente, ela propõe que o Mundo Invertido é o futuro de Hawkins e não apenas uma outra dimensão, como um avesso ou algo parecido. E sugere ainda que El é o Monstro.  A primeira proposição é pouco consistente. Para a segunda, há farto material, que a própria série se encarrega de oferecer. Todas as pistas estão lá, fáceis de achar.  

Aqui, trato apenas da tese do Mundo Invertido, que é o que me interessa. A premissa teria impacto gigantesco sobre os personagens e o desenrolar da história. Para tanto, o artífice da ideia coletou indícios ao longo dos oito episódios. É interessante. Não deixa de ser. É como rever ST sob a lente de uma nova leitura.

Pessoalmente, tenho uma preocupação com o risco de ST se perder nos meandros da viagem no tempo, como “Lost” ou outras ficções, tais como o universo de “Exterminador do Futuro”, no qual toda hipótese de racionalização, ainda que livre e cheia de amarras, seria totalmente ociosa diante da imensa licença poética que os filmes já utilizaram em quase 40 anos desde sua estreia nos cinemas.

Viajar no tempo é arriscado, principalmente no cinema. Quase desaconselhado.

Mas não é por isso que acho desinteressante a teoria. Nem porque considero infantil a saída estética e teórica para a fenda no tempo, que acaba funcionando como um vaso comunicante entre os dois mundos, sejam eles de diferentes dimensões, sejam temporalmente apartados (futuro e passado), e também como corredor para o Monstro.

Acho desinteressante porque a viagem no tempo é uma solução comum, já amplamente explorada, desgastada, que está no DNA de qualquer ficção científica, e, salvo uma grande novidade, não traria grandes contribuições para a série.

Entre viajar no tempo e o câncer de Will, fico com o câncer.

Para mim, duas perguntas são primordiais para entender ST.

1. Qual é a natureza do Monstro – de onde veio, do que é feito, para onde vai?

2. O que é o Mundo Invertido?

Minha tese continua sendo a de que o MI é uma dimensão paralela, avessa à nossa. Não o futuro. Mas um aspecto da realidade que procuramos recalcar, como os traumas de El. Lembrando: há o salão escuro e o MI propriamente dito. O salão é o ambiente das interações psíquicas de El com outros personagens, quando se projeta durante as experiências do doutor Brenner. Sua aparência é a da anti-paisagem.

Enquanto o MI é, digamos assim, o habitat do Monstro, uma espécie de Hawkins degradada, mas não futurista. Ele vive numa realidade que contamina a nossa e causa efeitos físicos, como fica provado no final, quando Will retorna, mas, depois da ingestão de matéria orgânica do outro lado, ou seja, da mesma natureza do monstro, acaba oscilando entre os dois mundos. Ora enxerga uma realidade, ora outra.

Pergunta: nesse ponto, Will também passa a viajar no tempo? Está apenas delirando? Ou as duas coisas?

Pergunta: e quando, antes de Will, sua mãe, Joyce, vê deformar-se uma parede de casa, ela também está delirando? Está testemunhando uma viagem no tempo? Ou vendo uma dimensão afetando fisicamente outra, com o MI e a realidade de Joyce imbricando-se?

Pergunta: esqueletos no MI indicam que outras pessoas estiveram lá antes dos habitantes de Hawkins ou apenas que o Monstro pode ter caçado noutras cidades?

Eleven não viaja no tempo. Ela se projeta. Nos experimentos da organização-fetiche, uma ideia tipicamente kafkiana, estimulada por câmaras de privação sensorial, é como se sua consciência se estendesse a outro lugar. Mas nunca a outro tempo.

Em resumo: a hipótese de viagem no tempo não encontra guarida na série. Procurem sinais de que algo ou alguém viajou no tempo. Não vão encontrar. Procurem sinais de que o Monstro vem do futuro. Não há. Procurem evidências de que Hawkins está ameaçada de ser engolida por uma fenda. À exceção do laboratório e da gosma no depósito nos fundos da casa do Will, não acharão nada.

Logo: o portal não se expande a ponto de engolir a cidade, devorando-a. Ele é uma fenda. Uma porta. Sua função é comunicar.

Embora cause perturbações no campo magnético, a gosma no depósito não aumenta nem diminui de tamanho.

Conclusão: a ameaça não se dá porque a matéria do MI fagocita a matéria do nosso mundo, mas porque a contamina. A ameaça deriva de dois pontos: o Monstro é predador; 2. Seu universo infecta o nosso.

No entanto, temos de lembrar sempre que estamos falando de uma série que fez desaparecer uma das personagens sem que isso resultasse em qualquer tipo de preocupação para as pessoas. Ninguém procurou Barb. Nem mesmo Nancy, sua melhor amiga. Logo, há muitos buracos. E não são buracos no tempo. São no roteiro mesmo.  

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