Pular para o conteúdo principal

De frente pro mar

Não saber por onde começar é um bom começo apenas quando a gente encara isso com humor. Estou perdido, podemos dizer, e essa perdição não significa abismo nem fim da linha, tampouco desespero. É mais como uma mudança. Estou aqui, finalmente, e de agora em diante é um pouco como quando a gente coloca os pés pela primeira vez numa sala de aula e se surpreende tentando adivinhar a historinha por trás de cada rosto. E cada rosto é uma interrogação até o momento em que o conhecemos.

Como aquele homem parado na frente das pedras na Praia de Iracema. Segurava um conjunto de fotos que ia retirando de um pacote, um desses envelopes pardos que usamos para guardar xerox de boletins e certidões de nascimento que depois esquecemos em gavetas. Estava sozinho, era dia e fazia esse sol brabo que é quase uma segunda natureza. Vestia calça jeans e camisa de mangas. Tinha recebido o pacote de outro homem, que o entregou e foi embora num trote tranquilo de quem cumpriu uma missão e agora volta pra casa. Dedicava a cada imagem uma porção significativa de tempo. Não olhava apenas. Estudava.

Chorava? Ria? Não sei. Eram fotos da família? Dos filhos? Da Esposa? Da mãe que morreu muitos anos antes? Eram fotos de mulheres? Eram fotos mesmo? Podiam ser cartas ou documentos secretos? Por que tanto mistério? Por que de frente para o mar? Por que, depois de olhar, suspendia a vista e se fixava na água, como se procurasse ali uma resposta? Por que naquele dia e não outro? O que perseguia?

Por que tive que olhar? Por que não passei direto e continuei pedalando até voltar pra casa e seguir com os afazeres, exatamente como no dia anterior? Por que, tanto tempo depois, ainda me perguntava por quê? Por que supunha que eram fotos e não papéis em branco, anotações de outra pessoa que se esquecera de entregar e agora finalmente chegavam às mãos do destinatário?   

É um completo mistério o que não explicamos quando o campo se estreita e o futuro se anuvia e nada nem ninguém consegue oferecer uma resposta minimamente segura de que as coisas continuarão como sempre foram. Nunca é assim. O que mudou na vida daquele homem? Talvez nem ele mesmo saiba, exceto que precisava olhar para as fotos e das fotos para o mar e depois novamente para as fotos, até que algo se completasse na cabeça e ele se sentisse mais uma vez pronto, seja para começar, seja para terminar.

Não é algo tão simples de fazer. Estar preparado, digo. Começar, de que ponto for. E seguir mesmo não sabendo onde pôr os pés, como numa cena de Indiana Jones na qual o herói precisa escapar de crocodilos, estalar o chicote e desvendar mistérios ao mesmo tempo. Talvez aquele homem parado diante do mar fosse isso. Um herói imaginário, que via na água o túnel e nas pedras um caminho. E nas imagens uma arma com a qual quem sabe pudesse enfrentar os perigos de agora em diante.  

Postagens mais visitadas deste blog

Trocas e trocas

  Tenho ouvido cada vez mais “troca” como sinônimo de diálogo, ou seja, o ato de ter com um interlocutor qualquer fluxo de conversa, amistosa ou não, casual ou não, proveitosa ou não. No caso de troca, porém, trata-se sempre de uma coisa positiva, ao menos em princípio. Trocar é desde logo entender-se com alguém, compreender seu ponto de vista, colocar-se em seu lugar, mas não apenas. É também estar a par das razões pelas quais alguém faz o que faz, pensa o que pensa e diz o que diz. Didatizando ainda mais, é começar uma amizade. Na nomenclatura mercantil/militar de hoje, em que concluir uma tarefa é “entrega”, malhar é “treinar”, pensar na vida é “reconfigurar o mindset” e praticar é “aprimorar competências”, naturalmente a conversa passa à condição de troca. Mas o que se troca na troca de fato? Que produto ou substância, que valores e capitais se intercambiam quando duas ou mais pessoas se põem nessa condição de portadores de algo que se transmite? Fiquei pensando nisso mais te...

Atacarejo

Gosto de como soa atacarejo, de seu poder de instaurar desde o princípio um universo semântico/sintático próprio apenas a partir da ideia fusional que é aglutinar atacado e varejo, ou seja, macro e micro, universal e local, natureza e cultura e toda essa família de dualismos que atormentam o mundo ocidental desde Platão. Nada disso resiste ao atacarejo e sua capacidade de síntese, sua captura do “zeitgeist” não apenas cearense, mas global, numa amostra viva de que pintar sua aldeia é cantar o mundo – ou seria o contrário? Já não sei, perdido que fico diante do sem número de perspectivas e da enormidade contida na ressonância da palavra, que sempre me atraiu desde que a ouvi pela primeira vez, encantado como pirilampo perto da luz, dardejado por flechas de amor – para Barthes a amorosidade é também uma gramática, com suas regras e termos, suas orações subordinadas ou coordenadas, seus termos integrantes ou acessórios e por aí vai. Mas é quase certo que Barthes não conhecesse atacarejo,...

Projeto de vida

Desejo para 2025 desengajar e desertar, ser desistência, inativo e off, estar mais fora que dentro, mais out que in, mais exo que endo. Desenturmar-se da turma e desgostar-se do gosto, refluir no contrafluxo da rede e encapsular para não ceder ao colapso, ao menos não agora, não amanhã, não tão rápido. Penso com carinho na ideia de ter mais tempo para pensar na atrofia fabular e no déficit de imaginação. No vazio de futuro que a palavra “futuro” transmite sempre que justaposta a outra, a pretexto de ensejar alguma esperança no horizonte imediato. Tempo inclusive para não ter tempo, para não possuir nem reter, não domesticar nem apropriar, para devolver e para cansar, sobretudo para cansar. Tempo para o esgotamento que é esgotar-se sem que todas as alternativas estejam postas nem os caminhos apresentados por inteiro. Tempo para recusar toda vez que ouvir “empreender” como sinônimo de estilo de vida, e estilo de vida como sinônimo de qualquer coisa que se pareça com o modo particular c...