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Iracema abre o voto

Iracema anunciou ao aracati: votaria no candidato da situação, esse de sorriso largo e bochecha esburacada. O candidato que planeja trazer mais peixes à areia e fundar um oásis na Praia Mansa, inaugurando a modernidade na província do Siará Grande. É o melhor, acredita a índia, alisando mechas dos cabelos recém-pintados de louro-abóbora. E talvez tenha razão. Mas há também a chance de que não tenha. É fim de tarde na taba. Iracema ensaia o discurso debaixo da mangueira. Tem medo de que seja mal interpretada entre índios mais esclarecidos. Contrariada, aceita correr o risco. A língua do povo é veneno. O que dirão se descobrirem que está do mesmo lado da tribo dos Ghomez? Nunca mais as miçangas vendem, os discos fazem sucesso, os shows lotam. 

Como um vento soprando entre as árvores, ouve alguém lhe dizer: votar no auxiliar do cacique? O que o cacique fez pela cultura da aldeia? E o que diz sobre a matança, tornada rotina? E os irmãos do cacique? Como aceitar suas alianças com a tribo dos pigmeus, responsável pela destruição da floresta? Para a índia, entretanto, o auxiliar do cacique não é o cacique, e isso basta para se convencer. 

Iracema e seus impasses. Manter a imagem de índia rebelde cuja arte é uma zarabatana contra a violência simbólica de viadutos e aquários? Ou votar no pele-vermelha e assim preservar as ninharias que, mediante uma conversinha aqui, uma cochichada acolá, conseguiu amealhar nesses anos? A coerência ou os nacos de poder no palácio que leva, por coincidência, o seu nome?

Dúvida cruel. Mas a índia não é boba: escolhe as ninharias. Iracema gosta das modas, sempre tão cheias de significado. No Ceará de hoje, a moda é a arte a favor, o humor a favor e o silêncio a favor. O azedume crítico é passado, e do passado Iracema quer distância. Memória curta é qualidade de vida, costuma dizer, em tom professoral. Contra a política, vote no político. Vote no cacique. Se uma ameaça aponta na esquina, melhor votar nele. É pouco, é vil, é mesquinho, mas é nosso pedaço, e isso ninguém tira.  

Não há por que ter vergonha, pensa a silvícola. Na tribo, não é a única a declarar abertamente que pretende manter o poder nas mãos dos velhacos de sempre. Ora, logo agora, que minhas miçangas começaram a vender?, pergunta, algo raivosa. Logo agora, que a cantoria rende frutos além-mar? Logo agora, que pude conhecer o hall de entrada do palácio? Logo agora, que meu barquinho aportou no porto? E todos sabem que no porto não cabem todos. Ou, perspectiva ainda mais desastrosa, diante da qual dezenas de indiazinhas aprendizes se assanham: e se o candidato rival, conhecido por suas artimanhas pecuniárias e desapreço às artes, vencer a gincana? O que restará do porto da aldeia, por onde todas as riquezas do espírito escoam?  

É melhor garantir. A índia não apenas vai votar no cacique. Quer também assegurar-se de que outras índias e índios também engrossem o coro dos contentes. Para tanto, organiza um ato de apoio. Uma grande onda chapa-branca, com todos fumando cachimbos e esvoaçando tecidos vindos de Paris. No dia combinado, está lá a índia. Caminha no calçadão de pés descalços e coração febril, convidando a todos para o show de daqui a pouco, na praia que também leva seu nome. Brada ao aracati: aqui tem sorvete. Conclama: votem no cacique. Exorta: é o melhor. 

A tribo cai no riso, no choro, na vaia. No cotovelo continental da Fortaleza, no areal de brancura cega, na capitania onde o esquecimento é a moeda de troca, faz-se arte de muito boa qualidade. E, o melhor, a favor.

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