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Coisas que eu talvez não saiba



Dar de ombros não significa apenas que você não sabe a resposta para uma pergunta difícil. Dar de ombros quer dizer mais: que você, além de não saber, não dá a mínima para isso. Ou, ao menos naquele instante, não está tão preocupado.

Hoje em dia - evito começar frases com "hoje em dia", mas agora foi inevitável - é cada vez mais raro encontrar pessoas que não estejam, por alguma razão, preocupadas com o que quer que seja. Vivemos assim, saltando de preocupações em preocupações como se saboreássemos vários sabores de pizza num rodízio. Substituam-se as pizzas por problemas e o rodízio pela vida: é nesse pé que estamos agora.  

Não conheço outra maneira mais eficaz de tornar tudo mais simples senão dando de ombros. Longe de ignorar o assunto, dar de ombros significa torná-lo muito humano, trazê-lo para bem próximo, examiná-lo de perto e finalmente dizer: eu não sei.

Por isso mesmo dar de ombros é libertador. Infantil, mas libertador. Quem consegue dar de ombros ao menos duas ou três vezes por dia não carrega peso qualquer sobre os ombros. Quem, acuado por uma pergunta dessas de tirar o sono de tão complexa, sente-se livre o bastante para simplesmente dar de ombros – essa pessoa não pode dizer que não é feliz. Ou pode, mas prefere dar de ombros.

Diz-se das pessoas que frequentemente dão de ombros que não se envolvem com os outros ou que, pior, evitam resolver os problemas, preferindo adiá-los. Grande bobagem. Se o problema não resiste a um mero dar de ombros, não é problema sério.

Ou, por outra, não é problema meu, já dizia Bill Murray. 

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